segunda-feira, 30 de junho de 2014

Meça em amor

No musical da Broadway “Rent” (um dos meus favoritos e que tem até filme), existe uma música linda chamada “Seasons of love” (“Estações do amor”). Nela, os cantores se perguntam como medir um ano: em minutos, em segundos, em bons momentos... (veja o clipe aqui e veja a tradução da letra aqui).

Infelizmente, muitas pessoas estão hoje medindo o valor e o significado de suas vidas em números, mais especificamente aqueles vistos na balança. O foco no peso – ou em sua perda – tornou-se complicado devido ao significado que ele assumiu na vida das pessoas. E isso eu vejo diariamente em minha prática:

1. Pessoas cujo principal “motivador” para adotar comportamentos saudáveis é o emagrecimento. Infelizmente, emagrecer não é um bom motivador a longo prazo e não depende exclusivamente da “responsabilidade pessoal” de cada um. Ganhar ou perder peso vai muito além daquela diferença entre o que comemos e o que gastamos. Existem diversos outros fatores envolvidos nesses processos, como: liberação de hormônios; acesso a alimentos e espaços seguros para a prática de atividade física; interação entre nutrientes no corpo; exposição a poluentes (da atmosfera e aqueles usados nas lavouras); grau de estresse; genética; presença de bactérias intestinais “saudáveis”, dentre outros.

2. Pessoas que buscam perder peso a fim de melhorarem sua autoestima. Para isso, buscam dietas, que levam ao “efeito sanfona” e ao descontrole alimentar, que por sua vez contribuem com uma redução ainda maior da autoestima e do senso de valor do indivíduo.

A vida é muito curta para que gastemos tanta energia e esforço em busca de algo que não é garantia inerente de felicidade, de melhor aceitação e interação social, de sucesso, nem de nada. Quando pacientes me procuram e estão muito obcecados com a perda de peso, e isso invariavelmente está atrapalhando em sua relação com a comida, eu peço para eles imaginarem duas situações:

1. Se o mundo acabasse hoje, quanto tempo você gastaria pensando em seu peso? O quanto ele importaria?

2. Feche os olhos e lembre-se de um momento especial em sua vida: o nascimento de um filho, o casamento, a notícia de uma promoção no trabalho, uma tarde brincando com seu animal de estimação... Tente reviver os detalhes e as sensações vividas naquele momento. Depois pergunte-se: o quanto de fato o peso influenciou naquilo que você estava sentindo? Se você fosse mais gordo/mais magro, o momento teria sido mais/menos especial e importante?

Então, como medir a nossa vida? Faça como diz o refrão da música: meça em amor.

sábado, 21 de junho de 2014

Das ironias (e bizarrices) da vida


Caros leitores! Vou começar abordando a bizarrice:

Pesquisadores das Ilhas Canárias (veja estudo aqui) conseguiram aprovar em algum comitê de ética o seguinte estudo: colocaram 15 homens com excesso de peso para receber uma dieta líquida de 320kcal/dia por quatro dias. Não bastasse isso, nesse período eles realizaram 9h/dia (isso mesmo, nove horas ao dia!) de exercício, mais especificamente caminhada a 4,5km/h. O “grande” achado foi que, ao final desse período, os indivíduos haviam perdido em média 4,9kg, sendo 2,8kg de gordura. Ao final de um ano, eles apresentaram reganho de 1kg de gordura.

Algumas coisas me chamaram a atenção nesse estudo:

1. Em relação às dosagens bioquímicas, somente os exames de colesterol total e LDL apresentaram reduções significativas com a intervenção após quatro semanas. Níveis de glicemia, insulina, triglicérides e HDL – que são importantes parâmetros de saúde, em oposição ao peso corporal – não sofreram alterações...

2. Não foi avaliada a mudança de comportamentos com a intervenção. Imagino o que deve ter acontecido com a alimentação dessas pessoas após quatro dias de restrição intensa... Compulsão alimentar, talvez? E como será que esses indivíduos encaram hoje a prática de atividade física?

3. Na seção “limitações” do estudo, os autores colocaram que TODOS os indivíduos reclamaram de dores musculares e nas articulações. E colocam um alerta: “indivíduos que estão menos motivados provavelmente não tolerariam esse tipo de intervenção”. Sério mesmo que eles acharam espantoso o fato de indivíduos que se exercitaram nove horas ao dia consumindo 320kcal sentirem dor? E outra: o que isso tem a ver com motivação?

4. Por que alguém decide fazer um estudo como este? O quão factível esse protocolo é na vida real das pessoas?!

Agora a ironia:

Pesquisadores chineses (artigo a ser publicado no Journal of Sport and Health Science, de título: “Metabolic response to 6-week aerobic exercise training and dieting in previously sedentary overweight and obese pre-menopausal women: a randomized trial”) colocaram 90 mulheres sedentárias com excesso de peso para participarem de um programa de exercícios (muito bem desenvolvido, por sinal, levando em conta medidas de frequência cardíaca de cada uma) ou de uma intervenção nutricional com objetivo de perda de peso, durante seis semanas. Ao final do período, as voluntárias do grupo exercício não perderam peso e nem gordura corporal, mas apresentaram melhoras significativas em resistência à insulina, glicemia e ácidos graxos livres. Já as mulheres que receberam orientações nutricionais para emagrecimento perderam peso, mas não apresentaram benefícios metabólicos (alterações positivas nos exames citados acima).

Ou seja: nesses dois estudos, perda de peso não resultou em melhorias à saúde (ao menos no que diz respeito a parâmetros metabólicos). Já mudanças de comportamentos (factíveis e de bom senso) sim.

Boa semana a todos!

domingo, 15 de junho de 2014

A ilusão do controle


Esta semana optei por transcrever um texto do psicanalista Contardo Calligaris, que fala sobre nossa preocupação com o peso e o corpo. Foi publicado em seu livro "Todos os reis estão nus" (aliás, eu recomendo!).

"Cuidado com o peso e a forma"
"Na semana passada, celebrando o Pessach ou a Páscoa, muitos jantaram ou almoçaram em família. Aposto que, em algum momento, diante da fartura e das guloseimas que estavam na mesa, a conversa tratou dos planos e dos esforços de cada um para manter a linha, emagrecer ou ganhar peso (músculos, não gordura, é claro), em suma, para conseguir dar ao corpo uma forma "satisfatória". Para essa conversa acontecer, não foi preciso que houvesse magros ou obesos à mesa. A inquietação com o peso e a forma não é efeito do estado de nosso corpo. Ela se tornou onipresente nas últimas duas ou três décadas: sua difusão coincide com o aumento dos transtornos alimentares (bulimia e anorexia), mas é, de fato, uma espécie de transtorno alimentar em si, um transtorno alimentar da conversa e do pensamento.

É citada por toda a parte (sem mais precisões) uma pesquisa segundo a qual 81% das crianças (norte-americanas) de dez anos estariam com medo de ser gordas e 50% das meninas dessa idade declarariam estar fazendo regime. Agradeceria aos leitores que me ajudassem a encontrar o texto original dessa pesquisa, que, segundo algumas fontes, seria do começo dos anos 1990. De todo modo, mesmo que a tal pesquisa seja uma lenda, sua popularidade confirma um fenômeno que verificamos todos os dias: hoje, a forma e o peso preocupam até as crianças.

Nesta altura, seriam esperadas acusações contra os nossos hábitos alimentares, contra a vida sedentária e contra os ideais impossíveis promovidos pela cultura de massa e pela indústria do regime e da forma física. Em suma, estaríamos todos pensando no peso por culpa da preguiça, do Mc Donald's, da Barbie e do GI Joe, bonecos que parecem ter sido inventados para que, desde a infância, ninguém se contente com o corpo que tem. Foi com essa expectativa que li o número de fevereiro da Counseling Today (revista da American Counseling Association), consagrado aos transtornos alimentares e à imagem do corpo. Expectativa frustrada, felizmente: num longo artigo sobre a obsessão com o peso, é entrevistada uma terapeuta, Anna Viviani, que oferece uma explicação específica para o nosso interesse pelo peso e pela forma, com ou sem transtornos alimentares propriamente ditos. Resumindo, ela entende assim: quando alguém sente que tudo na vida está fora do controle, sente também que os alimentos, o peso, o exercício são coisas que, em princípio, poderiam ser controladas.

Tanto faz, aliás, que alguém consiga seguir um regime à risca, emagrecer ou ganhar peso e fazer ginástica regularmente. O que importa é que as consultas, as propostas, as leituras e as conversas intermináveis sobre dieta e exercício têm um valor em si: elas mantêm viva a promessa de um controle - que é difícil, mas que é, em tese, possível. À diferença do que acontece, em geral, com a nossa vida amorosa e profissional, acreditamos (com certa razão) que o nosso peso e nossa forma dependem de nós. Nesse campo, podemos não fazer o necessário, mas sempre se trata de um não fazer "ainda": um dia, faremos e, quando fizermos o necessário, controlaremos o nosso peso e a nossa forma.

É tentador propor uma equação: quanto menos controle temos de nossa vida (amorosa, profissional, social e mesmo moral), mais nos preocupamos com peso e forma, que, bem ou mal, podem ser controlados. Numa direção parecida, no mesmo artigo, outra terapeuta, Erica Ritzu, resume assim a fala de um paciente com transtornos alimentares: 'se você não me escuta e não deixa nunca que a minha opinião conte, pelo menos posso escolher não comer nada'. De repente, a greve de fome dos presos políticos pode ser um modelo para entender o que acontece nos transtornos alimentares e em nossa preocupação com o peso e a forma.

Certo, na greve de fome os presos põem a vida em risco para promover uma causa (a sua própria ou outra). Mas também exercem, heroicamente, o que lhes sobra de liberdade: não são ouvidos, estão encarcerados, não podem nada, mas há algo que eles controlam: a sua própria ingestão de alimentos. É o que sugere Anna Viviani, ao interpretar nossa obsessão com regime e exercício: quem não controla nada pode, como último recurso, controlar sua alimentação, o seu peso e a sua forma.

Bom, só resta admitir que não controlamos nada, assim como os presos."

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Querer emagrecer


Muitos psicanalistas afirmam que um dos mais importantes recursos terapêuticos é confiar em nosso próprio feeling, isto é, confiar na nossa impressão inicial sobre o paciente, naquilo que sentimos ou percebemos antes de pensar.* Na minha opinião, isso é especialmente importante quando lido com pacientes com transtornos alimentares ou que apresentem uma relação complicada com a comida e com o corpo, mas que se escondem por trás do famoso “quero emagrecer”.

Não há nada fundamentalmente errado em querer emagrecer, mas quando o paciente me diz que essa é a motivação que o levou a me procurar, eu sempre procuro questionar o porquê (detalhe: não importa se o paciente é magro ou gordo). Não para julgar ou decidir se a justificativa dada é válida ou não, mas sim para de fato tentar entender quais as expectativas – por vezes irreais – por trás do desejo de perder peso. Eu não costumo assumir que é “normal” estar insatisfeito com o corpo e tentar mudá-lo porque essa é a tônica dominante nos dias de hoje. Eu não acho que seja simplesmente válido emagrecer “só dois quilinhos” porque afinal “todo mundo o quer”. Já faz algum tempo que aprendi a separar o “comum” do “normal”.

Voltando à questão de seguir o feeling, acredito que isso seja um pouco complicado numa sociedade em que comportamentos e atitudes patológicos foram progressivamente “normalizados”. Um colega da área da saúde veio me perguntar outro dia se eu não achava “ok” a pessoa vomitar de vez em quando, num dia de festa, por exemplo, quando tivesse comido demais, a fim de “se sentir melhor”. Ou mesmo “usar um laxantezinho” para dar “aquela limpada”... Ou seja, como orientar pacientes se aquilo em que acreditamos está distorcido e adoentado?!

Respondendo ao questionamento feito por este colega: não, provocar o vômito e usar laxante com finalidade de compensar a ingestão alimentar não é ok, não é normal, é patológico! Inclusive, um estudo recente do International Journal of Eating Disorders (veja aqui) verificou que mulheres com o que foi chamado de “transtorno alimentar compensatório” (definido por: uso de exercício excessivo e/ou períodos de jejum para compensar a ingestão alimentar e/ou controlar o peso; ocorrendo pelo menos duas vezes por semana nos últimos três meses; e na ausência de episódios objetivos de compulsão alimentar) apresentaram maiores distúrbios de imagem corporal, presença de alimentação transtornada, ansiedade e perfeccionismo que indivíduos controles.

Como disse o personagem Carlo Antonini, do escritor Contardo Calligaris, “algumas pessoas chegam aparentando a maior serenidade, mas estão à beira de uma crise que, de alguma forma, elas pressentem: pedem uma terapia, mas o que elas de fato procuram é um lugar onde lhe seja possível atravessar a loucura com um mínimo de amparo”.

* Dois livros muito interessantes que falam sobre o relacionamento terapêutico são: “Desafios da terapia” (Irvin Yalom, Ediouro) e “A mulher de vermelho e branco” (Contardo Calligaris, Companhia das Letras).

domingo, 1 de junho de 2014

Buscando novos olhares


Esses dias assisti a um breve documentário italiano (veja aqui) chamado “Il corpo delle donne” (“O corpo das mulheres”). A produtora – e narradora – analisa a representação da mulher pela mídia televisiva italiana, colocando que a presença feminina serve quase que somente para contentar os desejos masculinos. O vídeo mostra que a mulher foi reduzida a um mero objeto sexual, lutando contra o tempo por meio de diversas intervenções cirúrgicas. A mensagem mais marcante que fica é que as mulheres não são mais autênticas porque talvez não reconheçam mais seus próprios desejos, aqueles mais profundos. “O espelho serve muitas vezes para esconder ao invés de revelar”.

Pensei muito sobre o documentário durante a semana, pois de fato estamos mergulhados num mundo de imagens manipuladas, imagens que sedam e seduzem. Sedam porque começamos a buscar nas pessoas reais algo que não é comum a elas, aquela beleza “excepcional” que as imagens retocadas e “photoshopadas” revelam; seduzem porque são imagens glamourizadas, que transmitem a ideia de que tudo é possível mediante o consumo de determinados produtos e de que a vida certamente é melhor quando se encaixa em um determinado padrão de beleza vigente. Isso é tão sério e tão real a ponto de existirem pessoas que baseiam o valor de seu dia (talvez não de forma consciente) com base naquilo que enxergam no espelho pela manhã: se a imagem agrada, o dia corre bem; se não, é uma sucessão de fracassos. Um paciente meu, por exemplo, espantou-se quando eu neguei ficar me observando nua no espelho após uma festa pra ver o “tamanho do estrago” que aquilo que eu comi gerou em meu corpo. Pra ele isso era algo comum, trivial, e pior de tudo: normal.

Aproveito para transcrever aqui o trecho de um texto que gosto muito e que tem tudo a ver com este tema, cujo título é “Outro olhar, outra visão”:

“Vivemos sob o signo do olhar, sob o impacto da imagem, da sociedade do espetáculo. Nunca como hoje o olhar adquiriu tanta soberania e status diante dos outros sentidos; no entanto, é o sentido mais violentado pela quantidade de imagens despejadas sobre nós a todo momento. O ser humano primitivo tinha um olhar limitado pelas suas necessidades; já o ser humano moderno, devido à complexidade da vida, ao progresso da ciência e da tecnologia, está ficando com um olhar truncado pelas imposições artificiais criadas; cerceado em sua visão, ele não sente a realidade; agredido pelo acúmulo de imagens, ele não se deixa afetar por nenhuma delas. Vê tudo e não olha nada. Treinado para ver o mundo através da lente das grandes redes de poder, de manipulação e de acordo com seus interesses, o olhar estreita-se, o mundo torna-se opaco e a superficialidade da visão não capta o mistério das coisas e das pessoas. Marcada pelo olhar do racionalismo, a pessoa tudo examina, compara, esquadrinha, mede, separa... Mas nunca exprime. Daí o olhar reprimido, insensível, frio, duro, ríspido. Este é o pecado contra o olhar: olhar supérfluo e imediatista, olhar esquizofrênico e narcisista, olhar morno e sem vibração... Nesse olhar não há lugar para a admiração, nem para a acolhida e a presença do outro. Só existe o olhar que fixa, escraviza e aliena. Nossa civilização, que já ultrapassou a era do trabalho escravo, ainda está na era do olhar escravo.” (Padre Adroaldo Palaoro, SJ)

Que possamos todos sentir mais e olhar menos; que possamos acalmar a expectativa do nosso olhar; que possamos ver os outros – e a nós mesmos – com os “olhos do coração”.

Boa semana!