quarta-feira, 18 de março de 2015

Livro infantil incentiva imagem corporal positiva


Há um tempo, escrevi aqui no blog sobre um livro infantil americano chamado “Maggie goes on a diet” (“Maggie faz uma dieta”, em tradução livre). Ele fala sobre uma criança que começa a fazer uma dieta para perder peso, e conforme vai obtendo “resultados” é amplamente incentivada e “aplaudida”. A descrição do livro coloca que:

Esse livro é sobre uma garota de 14 anos que entra numa dieta e é transformada de uma garota extremamente insegura e com sobrepeso em uma garota de tamanho normal que se torna a estrela do time de futebol da escola. Por meio de tempo, exercício e trabalho duro, Maggie se torna mais e mais confiante e desenvolve uma autoimagem positiva.”

Basicamente, o livro cai na famosa falácia de que se você perder peso, sua vida vai mudar pra melhor: tchau insegurança, olá realizações, agora eu me amo. Mas é claro que não é tão simples assim. Quem trabalha com questões de alimentação e corpo e as próprias pessoas que sofrem com essas questões sabem que essa afirmação é bastante reducionista.

Além disso, como eu bem escrevi na época, acredito ser maléfico incentivar crianças de 4 a 8 anos (público-alvo do livro) a fazerem dietas, e já existem inúmeros estudos que confirmam que dietas são um fator de risco poderoso para o desenvolvimento de alimentação transtornada, transtornos alimentares, para o ganho de peso e para o desenvolvimento de uma pior autoestima e uma pior imagem corporal (para ler mais sobre esses achados, sugiro as publicações científicas da nutricionista americana Dianne Neumark-Sztainer, que podem ser encontradas no Pubmed).

Em contraponto a este livro, a americana Judith Matz, que trabalha há 25 anos como terapeuta especializada no tratamento de transtornos alimentares, escreveu o livro infantil “Amanda’s big dream” (“O grande sonho de Amanda”, veja aqui). Ele fala sobre uma jovem patinadora que ouve de sua técnica que está muito gorda, e por isso se desanima e para de patinar (pra quem acha que informar o outro sobre seu grau de obesidade pode ser algo positivo e motivador, sinto dizer que o efeito é justamente o contrário). Porém, após um reforço positivo de seus pais e de sua médica, que disseram que o tamanho de seu corpo não era um problema e de que ela poderia alcançar seu sonho de se tornar uma grande patinadora por meio de seu esforço e prática na modalidade, ela voltou aos treinos e viu que o importante era fazer aquilo que de fato amava, independentemente dos resultados.

A obra traz lustrações belíssimas e algumas importantes mensagens para a geração mais nova:

1. Seu corpo não é um impeditivo para que você seja feliz e tenha saúde.

2. A saúde pode vir em todos os tamanhos. O que importa não é o peso, e sim seu estilo de vida e o engajamento em comportamentos que de fato promovem saúde: dormir bem e em quantidade suficiente, comer uma ampla variedade de alimentos e comidas, se alimentar de acordo com seus sinais de fome e parar de comer quando estiver satisfeito, praticar atividade física regular e que traga prazer...

Em resumo: a felicidade não pode ser medida em quilos e seu valor como pessoa não pode ser dependente do tamanho do seu corpo.


Pense nisso!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Anfetamina liberada para o tratamento da compulsão alimentar nos EUA

Propaganda da década de 50 de um anfetamínico

A FDA (Food and Drug Administration), agência americana que regula a liberação de novos medicamentos, aprovou em fevereiro uma nova droga para ser usada no tratamento do transtorno de compulsão alimentar (TCA), chamada Vyvanse. No Brasil, o remédio se chama Venvanse e seu uso é aprovado somente para o tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

A substância ativa, lisdexanfetamina, é da família das anfetaminas, drogas já conhecidas por seu papel estimulador do sistema nervoso central e por seu papel anorexígeno, ou seja, promovem inibição da fome. As anfetaminas, muito usadas anteriormente no tratamento da obesidade, foram banidas pela Anvisa em 2011 e em 2014 o Senado aprovou um projeto de lei (discute-se que pressionado pela indústria farmacêutica) que libera novamente o comércio dessas drogas. O estudo que validou a aprovação da droga nos EUA foi bastante abrangente (veja aqui) e verificou que uma determinada dosagem do medicamento foi capaz de reduzir o número de episódios de compulsão alimentar em comparação com o grupo placebo após 11 semanas de uso. Alguns efeitos adversos comuns incluem risco aumentado de dependência, taquicardia, agitação, insônia, labilidade emocional e, é claro, falta de apetite e perda de peso. A empresa Shire, que fabrica a droga, já contratou até mesmo uma garota propaganda: a tenista aposentada Monica Seles, que sofre de compulsão alimentar.

Algumas coisas me incomodam a respeito dessa liberação:

1. A indústria farmacêutica, em sua campanha milionária para promover a droga, chama a atenção para a existência do TCA, transtorno alimentar ainda bastante estigmatizado e que muitas vezes fica “camuflado” por seus outros “colegas”, como a anorexia e bulimia nervosas. Aumentar a atenção para a existência da doença é algo bom. Porém, como agora o TCA está sendo vinculado à existência da droga, existe um risco do público acreditar que o remédio “cura” a compulsão, sendo que quem de fato trabalha na área sabe que os gatilhos de uma compulsão alimentar são muito mais profundos e abrangentes, e nenhuma droga é capaz sozinha de eliminá-los. Há de se considerar também que só existe um estudo avaliando a droga no tratamento do TCA, enquanto que existem muitos outros avaliando o efeito de linhas de terapia já estabelecidas (psicológica e nutricional) e com bons resultados.  

2. Existe um risco da droga começar a ser usada para perda de peso mesmo por indivíduos que não tenham compulsão alimentar, assim como o Victoza o foi (esse medicamento foi inicialmente desenvolvido e estudado para o tratamento do diabetes tipo 2, mas um dos efeitos colaterais foi perda de peso. Resultado: na semana seguinte, as prateleiras estavam vazias nas farmácias... Já escrevi sobre isso aqui).

3. Se as anfetaminas não são extremamente eficazes no tratamento da obesidade (e muitos estudos/médicos/pacientes poderão atestar isso), porque seriam no tratamento a longo prazo da compulsão alimentar, onde existe um comprometimento psicopatológico do indivíduo muito maior?


Muitos especialistas em transtornos alimentares estão cautelosos e preocupados com a rápida liberação desta droga (veja reportagem do NY Times aqui). Alguns profissionais da área, nos EUA, relatam que pacientes que já começaram a usar a droga passam “muito bem” durante o dia, enquanto a droga está agindo e a perda de apetite está acontecendo. Agora, à noite, quando o efeito da droga passa, a história é diferente. A compulsão vem com tudo. Afinal, um dos fatores precipitantes da compulsão alimentar é justamente a restrição alimentar (que a droga promove). 

Na opinião deles (e na minha também), esta droga está longe de ser a “solução” para a compulsão alimentar.