quinta-feira, 30 de abril de 2015

Em que unidades de medida você descreveria seu corpo?


(Este texto foi a resposta da minha paciente à pergunta do título; para entender melhor, leia aqui o último post que escrevi)


"A primeira resposta foi 'em nuvens'.

Nuvens são lindas, de diferentes formas e fluidas. Formam animais, criaturas que não existem. Daí lembrei que elas são metáfora de leveza. Pensei que não era uma boa unidade de medida, porque se opunha à ideia de peso. E o corpo tem peso.

A segunda resposta foi 'em viagens'.

Fiz também muitas viagens. Internas e externas. Estive em muitos lugares. Gosto de ser andarilha, de observar coisas, aprender gírias, hábitos. Meu corpo está junto.

Entretanto, pensar sobre a resposta fez com que me lembrasse de um episódio bastante triste de viagem, que mudou muito minha relação com meu namorado. Talvez tenha quebrado uma coisa aqui por dentro que nem sei se será possível consertar:

Há bastante tempo, ele queria muito que fôssemos passar uma semana em um resort. De minha parte, tinha pânico profundo desta ideia – ser obrigada a ficar na piscina de biquíni entre turistas deslumbrantes e bronzeadas. Parece bastante ridículo. Entretanto, algumas críticas a meu corpo fora da boa forma, críticas passadas naquela pior forma de recomendação para a saúde, feitas pelo meu namorado tinham me deixado escaldada. Ele começou a namorar comigo na minha fase mais gorda. Mas me conhecia há muitos anos, quando era magra, e por algum motivo isso me encanava demais – achava que ele lembrava de mim naquela época, sabe? E sei que isso o incomodava também. Sempre dava alguns conselhos para fazer exercício, esse tipo de coisa.

Bom, a história é que sei que consegui o dissuadir da ideia de ir a um resort por duas vezes. Mas numa terceira, ouvindo os conselhos de uma amiga do trabalho, decidi aceitar. Se ele gostava tanto daquilo, vamos fazer as vontades. Foram medonhas minhas incursões para comprar biquíni. Os que tinha na gaveta nem me serviam mais, joguei-os fora. Também nas lojas absolutamente nada servia. Não passavam nem no quadril. Sei que gastei uma fortuna em dois modelitos só para dizer que tinha conseguido. Arrumei as malas.

Chegamos à noite. Os dois tinham feito uma viagem extenuante para chegar no resort, cada um vindo de uma cidade diferente. Estava louca de saudades dele, de vontade de transar e de o apertar, mas não rolou assim que chegamos – ainda fomos jantar, bebemos muito, daí rolou. Fiquei meio chateada com isso, com a distância. E estava já bem preocupada com a questão biquíni. Dormi.

Amanheceu. Era dia de praia. O lugar tinha aquela beleza indecente. Azuis no mar que eu nunca tinha visto. Poderia morrer ali de tão bonito. Depois do café da manhã – acordamos tarde  coloquei um dos biquínis e acho que uma canga, nem me lembro. Vesti Havaianas e passei rímel. Tenho 'mixed feelings' sobre usar maquiagem na praia, um pouco brega, mas eu precisava me proteger. Desci. O caminho era longo e tortuoso, com uma vista deslumbrante para o mar. Adoro o mar. Adoro o sol também.

Cheguei na praia. Escolhi uma cadeira. As turistas bronzeadas deslumbrantes estavam lá. Seres imortais e tão bonitas. Sílfides. Era como se eu não encaixasse ali. Bateu um desespero.

Daí vi que havia um bar na praia. Eu tinha uma pulseira de 'tudo incluído'. Pedi um daiquiri. Achei graça. Se eu fosse escolher a mulher mais interessante da praia, escolheria a do daiquiri. Comecei a rir sozinha. Quem não tem siri, caça com daiquiri. Consegui sobreviver aos outros dias quase bem depois do feito.

Nesta viagem ainda, briguei feio com meu namorado sobre padrões de beleza. Consegui explicar exatamente o quanto mal me sentia. Quer dizer, não assim tão bem, porque nem eu sei, mas foi satisfatório. Ele nunca mais disse nada a respeito. Não que as coisas tenham ficado bem, alguma coisa quebrou aqui dentro, mas é uma batalha, sabe? 

Hoje me dei conta do quão machucada ainda sou por essa história. Parece bem boba. Parece uma nota de rodapé. Mas é isso. É você achar que não tem direito a ocupar uma faixa de areia. Não poder entrar numa piscina. Fiquei pensando uma resposta, que meu corpo poderia ser medido em poemas ou em histórias. Daí volta a ser algo muito intelectual. O corpo tem peso.

Lembrei ainda que adorava tomar sol na praia. No quintal. Não tinha a menor vergonha. Talvez hoje tenha que voltar a tomar sol. Daí decidi a medida: poderia medir meu corpo em raios de sol tomados durante a vida.

Tem peso, tem velhice, tem prazer. Talvez seja uma boa unidade de medida.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Carta ao corpo: um exercício transformador


Uma das coisas mais importantes quando queremos melhorar nossa relação com quem quer que seja é estabelecer e incentivar uma comunicação assertiva, certo? Falar aquilo que sentimos, sem no entanto culpabilizar ou agredir o outro... Uma comunicação sincera e ao mesmo tempo gentil, sempre que possível. Por isso, gosto bastante de pedir aos meus pacientes que escrevam uma carta ao próprio corpo, especialmente para aqueles que possuem uma relação difícil com ele e que sofrem com distúrbios de imagem corporal. Esse exercício de escrita é catártico, abre um canal de comunicação direta com o corpo, possibilitando assim uma transformação (mesmo que pequena) da relação entre o indivíduo e si mesmo. Afinal, nós somos o nosso corpo! Não existimos sem ele, estamos integrados!

O texto abaixo foi uma paciente minha que escreveu, e ela me autorizou publicá-lo aqui no blog para a apreciação de vocês (sim, pois é muito poético!).  

“Querido Corpo, Ilustríssimo Corpo,

Qual pronome de tratamento que você prefere? Nossa comunicação é tão rara e fugidia que até decidir o pronome tá difícil. Isso me faz lembrar outra lambança: a pessoa. Sim, porque a gente (ou ao menos eu) estamos acostumados a pensar o corpo em terceira pessoa – aprendi essa sacada com a Marília Coutinho, neste post do Blogueiras Feministas – e pensamos o corpo não em primeira pessoa, como deveria ser. Temos pouquíssima prática em “corpar”, ou seja, ser o próprio corpo. Daí é bastante confuso pensar o você-corpo nas evocações de segunda pessoa (nem vou mencionar o embrólio que o “você” e o “tu” apresentam na variante brasileira da língua).

Sem decidir o pronome de tratamento, digo que minha relação contigo apenas aparece em primeira pessoa em situações bastante específicas: quando faço amor, sexo ou, na mais bonita das hipóteses, os dois juntos. Daí eu sou você tudo junto. Também quando tenho crises de asma e não consigo existir fora de você e respirar. Ainda quando danço, momento em que sinto que tua presença é a minha. Ou ainda quando canto. Embora ande cantando ou dançando pouquíssimo para te visitar. Não é agradável. Por isso, comecei falando de gramática. Pra rodear.

Daí chegamos ao ponto. Às vezes, não te reconheço. Diria que na maior parte dos dias e noites. Você-corpo é um ente abstrato. Descrito em números, 54, 69, 70. Descrito em taxas de colesterol, açúcar e triglicérides. Descrito em ordens do rádio, os olhares no ponto de ônibus, nas broncas da minha mãe.  Você não se cuida. Os velhos chavões. Praticar exercícios. Emagrecer. Cuidar da saúde. Ao menos, passo filtro solar. E fio dental. E penteio meu cabelo. Cabelo cheio de tintura, porque ainda não tenho cabelos brancos e porque gosto de cabelos tingidos. Cabelo picotado na diversão de cortar o próprio cabelo. Talvez o cabelo seja uma presença tua, você-corpo, que eu sei que é minha.

Reli meus poemas que falam do tema. Habitar o próprio corpo. Encontrei aquela nota melancólica. A dificuldade. O julgamento dum alguém (quem atende por esse outro?). Depois mando os poemas, porque agora estou atrasada. Sim, estou atrasada e decidi escrever logo essa carta que a Carol pediu porque estava me angustiando. Fiz listas. Organizei ideias. Mas agora-aqui-contigo sempre é muito mais complicado.

A verdade é que não sei, não decidi ainda se quero te chamar de você. Muito menos de “eu”. Sabe como geralmente me descrevem? “Uma menina inteligente”. Disso decorrem duas coisas: jura que sou ainda “menina”, se já tenho 35 anos? Gosto que me chamam de “inteligente”, porque assim se reforça a ideia: não preciso ter você-corpo pra existir e ser elogiada. Imagino que nada disso seja agradável de ler, desculpa, mas estamos nessa tentativa de pingos nos is.

Vou pensar mais em tudo, prometo.

Aproveita que você é a pessoa do lado físico e também me escreva.

Com dificuldades e com amor,

Eu-mesma.”

Confesso que fiquei emocionada ao ver o mergulho que essa paciente fez em si mesma. É preciso coragem e disposição. Pois essa é a verdade essencial: para se melhorar a relação com o corpo, é fundamental haver intenção. A pessoa precisa querer sair do ciclo de autoflagelação e ódio ao corpo. É preciso deixar as culpas e mágoas de lado, por mais difícil que seja esse processo. É preciso se tratar com um pouco mais de autocompaixão.

Como reflexão final na consulta, chamei a atenção da autora quanto à parte em que ela coloca como seu corpo é descrito atualmente (“Descrito em números, 54, 69, 70. Descrito em taxas de colesterol, açúcar e triglicérides. Descrito em ordens do rádio, os olhares no ponto de ônibus, nas broncas da minha mãe.”). Questionei a ela como ela descreveria seu corpo, que unidades de medida usaria... Já que cabe somente a ela definir isso. O resultado foi outra belíssima composição escrita, que publicarei no blog semana que vem.

Bom feriado a todos!


OBS: uma amiga nutricionista, Alessandra Fabbri, também publicou no blog do Genta (Grupo Especializado em Nutrição e Transtornos Alimentares) uma carta ao corpo de uma paciente sua. Veja aqui

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Coelhinho da Páscoa, que trazes pra mim?


Esta semana, que antecede a Páscoa, é chamada pelos católicos de Semana Santa, e é para mim um momento de bastante reflexão sobre a necessidade que temos de “renascer” para determinadas situações e circunstâncias de nossa vida. Assim como eu acredito que Jesus Cristo morreu por compaixão a nós e ressuscitou para que tivéssemos uma nova vida, cheia de esperança e amor, também acredito que podemos aproveitar a Páscoa para alimentarmos nossa autocompaixão e a esperança de construir uma nova relação com a comida.

Todos sabemos que, na Páscoa, existe um apelo consumista exagerado em torno do chocolate, um dos alimentos mais vistos pelas pessoas como “proibido” ou “engordativo”. Junte esse apelo comercial com a aura de “proibido” e essa se torna uma época de exagero e culpa para indivíduos com transtornos alimentares ou com uma relação complicada com a comida e o peso. Se esse é o seu caso, reflita sobre o seguinte:

1. Chocolate é só chocolate. Quando você consegue vivenciar a experiência de degustar de verdade um chocolate, envolvendo nisso todos os seus sentidos, sem deixar a cabeça ser levada pela enxurrada de pensamentos negativos, depreciativos e culpa, você aos poucos chega ao entendimento de que chocolate é apenas isso: chocolate. Sim, ele é gostoso e prazeroso. Mas você não consegue comer 200g de uma vez se estiver plenamente conectado com a experiência e não se julgar por estar comendo algo tido como “proibido”.

2. Exerça sua seletividade. Se for mesmo comprar mesmo um ovo de Páscoa (apesar dos preços abusivos!), pense: você realmente prefere comprar um ovo de Páscoa imenso daquela marca comum ou de repente vale a pena comprar um ovo menor de uma marca mais saborosa e gourmet?

3. Aproveite o simbolismo espiritual dessa festa para rever questões importantes sobre sua vida. Autocompaixão é sermos tolerantes com nossos erros e limitações, é a capacidade de nos perdoarmos quando acreditamos que fizemos algo errado. O quanto eu consigo exercer a autocompaixão depois de comer um grande quantidade de chocolate? Como eu consigo cuidar melhor de meu corpo, sem ser por meio de restrições e culpa, e amá-lo um pouco mais?   

E lembre-se:



Boa Páscoa a todos!