sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Então é Natal...



Dezembro é um mês de sentimentos intensos para muitas pessoas. Muito calor, o cansaço de todo um ano acumulado, perspectiva de férias/recesso à vista, correria para finalizar o que ficou por fazer, confraternizações mil, todos os lugares muito cheios, gastos extras...

“E como se não bastasse, ainda por cima tem a comida. Muita comida. Uma verdadeira esbórnia alimentar” (fala de uma paciente minha!).

Para muitas das pessoas que me procuram, a combinação de emoções intensas + oferta excessiva de comida resulta quase sempre num verdadeiro “pânico” das festas de final de ano, seguido de exageros alimentares descontrolados e exacerbação do sentimento de culpa ao comer.

Na tentativa de amenizar esse clima, deixo neste post – que é o último do ano, afinal também preciso descansar! – algumas sugestões e reflexões:

1.  Natal é comida. Mas não é só isso. Não é novidade que as festas de final de ano envolvem bastante comida gostosa e diferente. Mas qual o significado dessas festas para você? O que mais é importante nessas celebrações, além da comida? Rever a família e amigos? Repensar a vida? Aproximar-se dos rituais e tradições, como por exemplo decorar uma árvore, acender velas, preparar um presépio? Por mais que a comida possa parecer o foco para você, tente enxergar o contexto mais amplo e as outras oportunidades - de reflexão e convivência, por exemplo - que as festas trazem.

2. Na ceia, respire fundo antes de se servir. Coma normalmente ao longo do dia, não se convença de que “JÁ QUE é Natal, melhor comer pouco porque JÁ SEI que vou exagerar à noite”. Ao chegar na festa, respire fundo e permita-se ver o que será servido. Pense: quais pratos você está afim de saborear? Será que eles combinam entre si? Será que tem alguma coisa que você não queira tanto assim e que pode reservar para comer no dia seguinte? Será que tem coisas que você sabe que poderá comer outra hora e por isso não farão falta caso não coma hoje? Gosto do exemplo do panetone: ele está à venda desde outubro! E permanecerá à venda após o ano-novo, quando inclusive ficará mais barato! Você poderá comê-lo outra hora!

3. Se dê um presente: permita-se de verdade. Quando comemos algo com a sensação de que não deveríamos ter comido, e por isso sentimos culpa, não estamos nos permitindo verdadeiramente comer saboreando e sentindo alegria e prazer. Ficamos desconectados da comida. Isso prejudica a nossa noção de saciedade, tanto física quanto psicológica, e é por isso que quando comemos com culpa comemos mais. Sabemos que é comum comer um pouco mais no Natal e em outras festas comemorativas: a oferta de comida é maior, os pratos normalmente são diferentes do usual e bem gostosos... Mas que esse “comer mais” parta de uma decisão consciente de repetir aquele prato porque está muito gostoso, e não de uma decisão automática baseada no pensamento “já que comi o que não deveria mesmo, agora dane-se!”.

4. Exercite a autocompaixão. Natal é a época em que juntamos um dinheiro pra caixinha de Natal dos funcionários do prédio, montamos sacolinhas natalinas para crianças carentes, doamos cestas básicas... Tudo com muita compaixão e solidariedade, certo? Mas também é a época em que as pessoas mais se culpam e se “flagelam” por de repente comer duas fatias a mais de pudim na ceia. Que tal esse ano exercitar a autocompaixão? Se achar que exagerou ou comeu muito, e começarem a vir os pensamentos de autocrítica e julgamento, respire fundo e deixe-os ir embora. Você comeu a mais. Tudo bem. Isso acontece. Você não é uma pessoa pior por causa disso. Pode acreditar. 

5. “Nossa! Como você...” No Natal encontramos parentes distantes que muitas vezes têm algum comentário - nem sempre agradável - pra fazer sobre nossa aparência. Infelizmente, você não pode controlar o que os outros vão dizer, mas de certa forma pode controlar sua reação emocional àquilo que ouvir. Não leve para o pessoal. Pessoas que fazem comentários frequentes sobre aparência e peso provavelmente apresentem algum incômodo ou desconforto consigo próprias, e acabam projetando isso nos outros. Se começarem a falar de peso e corpo, não participe da conversa, vá tomar um ar, ou tente criar novos tópicos de conversa para poder mudar o assunto.

6. Não crie resoluções e metas impossíveis de ano novo. Especialmente em relação ao seu corpo.  É comum nesse período as pessoas mentalizarem ou escreverem suas resoluções para o ano que segue, e muitas vezes elas têm a ver com peso e corpo. Ex: "em 2015, farei academia cinco vezes na semana" - sendo que hoje a pessoa é sedentária. Ao criar uma meta muito distante e inatingível, gera-se uma sensação de ansiedade que acaba inclusive atrapalhando a sua concretização. Foque em metas mensuráveis e possíveis, e pense também em outras área s significativas de sua vida: trabalho, espiritualidade, família, amigos...

7. Se ligue no momento presente: foco no sabor instante a instante. Quando estiver comendo, dedique-se de fato a sentir o sabor, a textura, o aroma daquilo que está comendo. Desta forma, terá uma experiência alimentar mais completa e satisfatória. Muitas vezes, comemos pela memória, e não pelo gosto. Um exemplo prático: tem um panetone recheado de uma confeitaria perto de casa que eu adoro. Passei na frente do local esses dias e vi uma fila enorme, logo me lembrei dele e do quanto ele estava delicioso ano passado. Fiquei na fila, comprei o bendito e não via a hora de chegar em casa para poder comê-lo. Abri o pacote um pouco acelerada, já antecipando os momentos de prazer que teria. Dei as primeiras mordidas depressa, até que enfim! Lá pela quarta ou quinta mordida, passada a euforia inicial, comecei a de fato sentir o gosto, que era no fundo o que eu inicialmente queria... Qual não foi minha surpresa ao perceber que a massa havia mudado de sabor? Que o recheio estava ressecado e mais doce do que eu me lembrava? Ou seja: o panetone não estava agradável ao meu paladar, mas eu não pude prestar atenção logo de cara pois estava comendo pela memória, ainda tentando reviver aquela situação do ano passado! Assim que tive essa percepção, pude parar de comer. Ele não estava me dando o prazer sensorial que eu desejava.

8. Exercite a gratidão. Essa época é bastante simbólica: um ciclo terminando, outro que se inicia... Presença da família e amigos... A importância religiosa do Natal (para aqueles que acreditam)... Aproveite essa energia para exercitar sua gratidão. Tente se lembrar de todas as coisas boas que você possui e que te aconteceram nesse ano. Sinta um calor gostoso se espalhando pelo seu corpo... Você está vivo e é uma pessoa que merece respeito, amor, saúde e alegria. Não importa seu peso, sua cor ou aquilo que você come ou deixa de comer. 

BOAS FESTAS A TODOS E ATÉ O ANO QUE VEM!

domingo, 30 de novembro de 2014

Apenas um corpo...


Dia desses numa roda de amigos, ouço um papo trivial:

“Nossa, quanto tempo! Como você está?”
“Ótima, e você?”
“Também!”
“Esses dias lembrei mesmo de você, vi aquele seu amigo, o Fulano...”
“Qual Fulano? Aquele ‘saradão’?”

Essa conversa me fez pensar por alguns instantes. Provavelmente, esta última pessoa conhecia dois Fulanos, e na tentativa de identificar sobre qual deles estava se falando, ela fez uma referência explícita ao seu corpo. E não se referiu, por exemplo, à cor dos olhos ou à altura de Fulano, que são características naturais e imutáveis; não se referiu também a seus gostos pessoais ou seus traços de personalidade (“qual Fulano, aquele advogado?” ou “qual Fulano, aquele engraçado/mal humorado?”).

Foi aí que eu percebi que talvez Fulano tenha se tornado um molde. Fulano agora será lembrado por aquilo que ele aparenta ser: apenas um corpo.

Não quero aqui moralizar quem valoriza o cuidado estético do corpo; afinal, como o próprio título do blog diz, o corpo é de cada um, cada um tem sua verdade sobre o que é melhor e mais desejado para si próprio. Mas eu particularmente não gostaria de ser lembrada como “a Carol, aquela gorda/magra/sarada/peituda/sem peitos”. Isso me afastaria da essência de quem eu de fato sou, dos meus valores e, mais importante, daquilo que é mais importante em minha vida.

Amo e respeito meu corpo, ele é minha morada sagrada, é ele que me permite transitar pela minha existência. Mas acredito que amar e cuidar do corpo seja diferente de transformá-lo em um “altar de idolatria”.

Espero um dia, então, ser lembrada como “a Carol, aquela moça que valoriza a família/que gosta de comer boa comida/que faz aulas de dança/que gosta bastante de ler”.

Que é feliz.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Diário de gratidão corporal


Este mês finalizo um curso de três meses sobre meditação e saúde. Aprendemos sobre os princípios e o contexto da meditação budista e sua aplicação (de forma adaptada, claro) na área da saúde, por meio do método da atenção plena (mindfulness, como já retratei aqui no blog em outros posts; basta buscar no canto direito da página!). Confesso que foi um curso transformador tanto em nível pessoal quanto profissional, pois consigo utilizar muitos dos ensinamentos e princípios com meus pacientes em suas jornadas por uma alimentação mais atenta, consciente e saudável. 

Um dos aspectos mais enfatizados pela filosofia budista e, consequentemente, pelos estudiosos da atenção plena, é o papel da gratidão e da compaixão (capacidade de ser mais compreensivo e gentil) para uma vida mais feliz e saudável. Existe inclusive um centro de estudos na Universidade de Berkeley, na Califórnia, que promove pesquisas  nas área de psicologia, neurociência e sociologia do bem-estar. Uma das matérias escritas por esse grupo reforça os benefícios à saúde em se manter um “diário de gratidão”, isto é, um registro periódico (eles sugerem que seja semanal) de coisas pelas quais somos gratos em nossas vidas. Pode ser desde algo simples - como ter acordado pela manhã -
como algo mais surpreendente/inusitado - ter recebido um elogio de um superior rigoroso no trabalho. 

Os benefícios de tal registro, que incluem melhor qualidade de sono, menos sintomas de doenças e maior sensação de felicidade são compreensíveis: ao tomarmos consciência das coisas pelas quais podemos agradecer, aumentamos nossa conexão com o mundo e com os outros e conseguimos enxergar além de nós mesmos e dos sofrimentos cotidianos que por vezes exacerbamos.

Alguns estudos já falam sobre a relação entre gratidão corporal e uma melhor satisfação corporal. Uma pesquisa que usou meditações que treinavam gratidão e autocompaixão verificou redução na insatisfação corporal das participantes, bem como uma menor importância da aparência no julgamento de seu valor pessoal. Outro estudo demonstrou que trabalhar a gratidão reduziu os escores de insatisfação corporal em estudantes após serem expostas a imagens de modelos magras.

Quando as pessoas me questionam como de fato podemos melhorar nossa relação com o corpo e nos sentirmos mais satisfeitos com o modo como ele existe hoje (mesmo que no fundo ainda  queiramos ser mais magros/fortes/etc), respondo que o primeiro passo é a intenção, ou seja, o desejo real de querermos enxergar e vivenciar o corpo de um modo diferente. Então, se você está sofrendo com sua imagem corporal, que tal se dedicar à criação de um diário de gratidão corporal

1. Separe um caderno bem bonito para essa finalidade. Se tiver dons artísticos, crie uma capa diferente, faça uma pintura ou uma colagem de fotos que te tragam recordações e sensações positivas.

2. Comprometa-se a escrever com uma certa periodicidade, que pode ser por exemplo uma vez por semana.

3. Agradeça pelas funções muitas vezes sutis de seu corpo, ao invés de inicialmente focar em partes específicas. Ex: "sou grata pelo trabalho do meu estômago em digerir minha comida, pois sem ele eu não teria como absorver nutrientes e sobreviver".

4. Tente se recordar de experiências positivas que só foram possíveis graças ao corpo (“sou grata por meu corpo ter conseguido dançar a festa inteira no final de semana”). Para isso, pode ser mais fácil fazer o caminho inverso: tentar se lembrar de situações limitantes que você vivenciou porque algo no corpo talvez não "funcionasse" bem.

5. Esforce-se para de fato sentir a sensação de gratidão em seu corpo conforme escreve. Após escrever uma frase, feche os olhos e perceba os sentimentos que vêm à tona.

Para finalizar, vejam aqui um curto exercício de meditação para trabalhar a gratidão corporal.



Boa semana a todos!

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Dia Mundial do Diabetes: repensando o convívio com a doença


O Dia Mundial do Diabetes, comemorado em 14 de novembro, é uma data de sensibilização quanto à prevenção da doença, seu diagnóstico precoce e o controle das variações da glicemia (que é o açúcar do sangue). Tal controle depende intimamente de um estilo de vida saudável, que envolve a prática de atividade física, uma alimentação equilibrada e também o controle do estresse.

Em relação à alimentação, a boa notícia é que as diretrizes mais atuais, como a da American Diabetes Association, não são prescritivas e enfatizam a individualização do plano terapêutico nutricional. Ou seja, elas colocam que não existem “alimentos proibidos” ou comidas específicas que a pessoa com diabetes não possa comer, mas ressaltam que a mudança de comportamentos é sim necessária para um bom controle e convívio com a doença.

Agora em outubro, no workshop do movimento Nutrição Comportamental - do qual faço parte como membro do Genta -, pude falar sobre estratégias para auxiliar na mudança de comportamentos alimentares de indivíduos com diabetes (aliás, haverá um capítulo só sobre o tema no livro da Nutrição Comportamental, que será lançado ano que vem!). E uma dessas estratégias é a prática do mindfulness termo que pode ser traduzido como “atenção plena” (e que também estará no livro!).

A atenção plena é a capacidade de intencionalmente trazer atenção ao momento presente, sem julgamentos ou críticas, com uma atitude de abertura e curiosidade. A prática da atenção plena, que se dá por meio de exercícios meditativos, nos faz responder de forma menos automática a determinados estímulos, inclusive alimentares. Já escrevi nesse blog sobre um estudo que avaliou os benefícios do comer com atenção plena (mindful eating) para o controle metabólico de pacientes com diabetes tipo 2, e outros estudos publicados recentemente (vejam aqui e aqui) já mostraram que a atenção plena promove benefícios na qualidade de vida, na redução do estresse e consequentemente no controle glicêmico de pacientes com diabetes.

Se você conhece alguém com diabetes ou mesmo convive com a doença, não se contente com regras alimentares genéricas sobre o que deve ou não comer. Sua alimentação pode ser pensada de forma global, levando em conta seu estilo de vida, suas preferências e o autoconhecimento de seu corpo e seus sinais internos. Pense nisso.

Aproveito para deixar como dica um outro texto sobre essa data comemorativa, que escrevi em 2011 aqui no blog.
  
Boa semana a todos!

sábado, 1 de novembro de 2014

“Gente gorda não tem noção mesmo”


São Paulo, uma manhã dessas. Calor de 29oC já às 9h da manhã. Sentada no metrô, vejo uma moça obesa entrando, bem bonita inclusive. A senhora ao meu lado comenta: “gorda desse jeito e ainda usando essa calça colada!”. Finjo que não era comigo e seguimos viagem.

A fala acima não é incomum. Aposto que você já ouviu algumas variações dela, e principalmente dirigida a mulheres:

“Nossa, gente gorda não tem noção mesmo!” (comentário proferido ao ver uma mulher gorda usando minissaia, por exemplo)

“As pessoas têm que entender que certas coisas simplesmente não caem bem em determinados tipo de corpo.”

Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que as frases acima são extremamente preconceituosas e só reforçam o estigma da obesidade, tema já tratado anteriormente aqui nesse blog. Uma evidência clara do teor preconceituoso desses comentários é que muito provavelmente eles não seriam dirigidos a pessoas magras que estivessem usando uma calça colada, uma minissaia, uma blusa mais curta...

Em relação ao primeiro exemplo, sobre “falta de noção” dos obesos, a afirmativa pode muitas vezes ser verdadeira. Explico: diversos estudos, como este e este mostram que pessoas com sobrepeso ou obesidade têm a tendência de subestimar seu peso e tamanho corporais, ou seja, muitos não se percebem como gordos. Alguns estudiosos da área sugerem uma explicação para tal fato: o estigma da obesidade é tão forte e tão presente em nossa sociedade que não enxergar o corpo como gordo pode trazer um certo “alívio” no convívio diário com si mesmo e os outros. Seria uma espécie de “mecanismo de defesa” contra o sofrimento que vem do estigma.

Alguns diriam: “Ah, mas se a pessoa não se enxerga gorda, como ela vai adotar comportamentos que tragam benefícios à saúde?”

Em primeiro lugar, precisamos entender que o peso/tamanho do nosso corpo não é o único motivador para que pessoas adotem comportamentos saudáveis. E não podemos determinar o estado de saúde de alguém com base em seu peso, isso seria novamente o estigma da obesidade em ação. Afinal, existem muitos magros que comem de forma não saudável e gordos que, por sua vez, o fazem.

Em segundo lugar, será mesmo que ter uma noção mais clara do tamanho do corpo – o que no caso de obesos implica provavelmente em sentir-se mais “inadequado” – influencia positivamente na saúde? Este estudo encontrou que a diferença entre o peso atual e o desejado parece ser um preditor mais forte de saúde física e mental do que o IMC. Ou seja, muitas vezes, o sentir-se inadequado em nossos corpos influencia mais no surgimento de consequências negativas à saúde do que o peso em si. Já esta pesquisa mostrou que pais que identificavam seus filhos como tendo sobrepeso ou obesidade não estavam mais propensos do que pais que não identificavam corretamente seus filhos a adotar determinados comportamentos de saúde, como ofertar mais frutas e legumes, reduzir a oferta de refrigerantes, promover mais refeições em família... E mais: os pais que caracterizavam seus filhos como gordos estavam mais propensos a encorajar a prática de dietas, o que por sua vez já se sabe que promove ganho de peso a longo prazo.

Finalmente, em relação à segunda frase, sobre pessoas que “não entendem que certas coisas não lhes caem bem”... Acredito que quem tem que decidir se a roupa cai bem ou não é a própria pessoa que a veste. Será que precisamos julgar até mesmo a escolha da indumentária alheia? Que tal exercitar o não julgamento?


Boa semana!

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Mais notícias sobre estigma da obesidade


Como já foi falado em outros textos do blog (veja aqui), o estigma da obesidade é a discriminação ou estereotipação de pessoas devido ao fato de serem obesas. Um estudo americano publicado este ano no International Journal of Eating Disorders (veja aqui) avaliou episódios dez programas populares de televisão assistidos por adolescentes e encontrou dados alarmantes:

  • Em 50% dos episódios analisados, houve pelo menos uma situação em que algum personagem foi discriminado devido ao seu peso;
  • Em 41% das situações em que ocorreu estigmatização devido ao peso houve risadas da plateia;
  • 41% dos alvos de estigmatização tinham peso considerado normal
Ou seja, mais um indício de que o estigma do peso e do corpo – em especial da obesidade – está amplamente presente em nossa sociedade.

E qual o problema disso? Bem, além de causar sofrimento e contribuir para o surgimento de transtornos alimentares, o estigma da obesidade está associado ao aumento no peso corporal, ao aumento na circunferência de cintura e a uma chance seis vezes maior de se tornar obeso com o passar do tempo, segundo estudo publicado na revista Obesity (veja aqui). Ou seja, o foco na perda de peso e na ideia de que pessoas obesas têm algo “errado” que deve ser “consertado”, ao invés de contribuir com o emagrecimento, o prejudica.

Até quando vamos tolerar a propagar a estigmatização da obesidade? Até quando vamos focar nossos esforços e tratamentos clínicos no emagrecimento e não na mudança de comportamentos para que os indivíduos tenham uma vida verdadeiramente saudável e feliz, independentemente da perda de peso?

Boa semana a todos!

sábado, 11 de outubro de 2014

A vida agridoce



Recentemente estava discutindo com uma paciente obesa um conto do Irvin Yalom, psiquiatra e psicoterapeuta americano que gosto muito. No texto em questão, “A mulher gorda” (está no livro “O carrasco do amor”), o terapeuta conta a ocasião em que atendeu uma paciente obesa que acreditava que uma série de coisas davam errado em sua vida graças à sua gordura. Conforme ela vai emagrecendo, porém, percebe que o buraco é bem mais embaixo...

Gosto de indicar esse texto para alguns pacientes pois mostra o processo do emagrecimento, que por vezes é bem doloroso e expõe questões profundas da vida do indivíduo (que estavam ocultas pela gordura e pela idealização da perda de peso). Entretanto, sempre alerto os pacientes que no início do texto o autor demonstra seu preconceito contra obesos:

“Sempre me senti repelido por mulheres gordas. Eu as acho repulsivas: o absurdo andar bamboleante, a ausência de contornos corporais – seios, colo, nádegas, ombros, maxilar, ossos do rosto –, tudo, tudo aquilo que gosto de ver numa mulher oculto por uma avalanche de carne. Como elas ousam impor seus corpos a todos nós?”

Após lermos juntas esse texto, minha paciente começou a chorar e verbalizou o seguinte: “Sabe, Carol... Eu concordo com ele. Por isso não aguento mais viver no meu próprio corpo.”

Na minha prática, percebo que os próprios pacientes obesos podem ser extremamente preconceituosos e rígidos consigo mesmo. Muitos têm medo de abandonar a “gordofobia” e aceitar um pouco mais seus corpos, pelo receio de que isso signifique, então, abandonar o desejo de ser magro.

Pegando emprestado o título de um famoso livro, digo a esses pacientes que a vida tem “80 tons de cinza”, isto é, a vida não se resume ao preto e branco. A dicotomia, ou seja, o pensamento “8 ou 80”, provavelmente contribuiu com seu ganho de peso e uma relação complicada com a comida. Não é porque me considero feminista, por exemplo, que não sei apreciar quando um homem abre a porta do carro pra mim ou paga um jantar. Feminismo não exclui gentileza. (Aliás, para quem quiser ler um ótimo livro sobre o feminismo moderno, indico “Como ser mulher”, da britânica Caitlin Moran; veja aqui)

Aceitação corporal não significa necessariamente amar 100% do seu corpo e se ver livre do desejo por mudanças. Significa respeitá-lo um pouco mais para que mudanças duradouras possam acontecer. Significa ter compaixão e aceitar que somos seres imperfeitos. E que tudo bem ser assim.

Você não precisa desistir do seu desejo de emagrecer se assim o desejar. Só não coloque sua vida em stand by até que isso aconteça.

Bom final de semana a todos!

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O processo de cura de um transtorno alimentar


Este final de semana estive revendo alguns materiais do congresso deste ano da Academy for Eating Disorders, em Nova York, e encontrei o relato de uma paciente que conseguiu se curar do transtorno alimentar, publicado originalmente no site EatingDisordersRecoveryToday.com. Resolvi traduzi-lo para vocês. Acredito que seja útil para todos que estejam trilhando o difícil – mas recompensador! – caminho da cura, quer seja de um transtorno alimentar propriamente dito ou mesmo de uma relação complicada com a comida.

Boa leitura!

“Muitas imagens de centros de tratamento para transtornos alimentares mostram uma pessoa no topo de uma montanha, sorrindo de braços abertos, abraçando o destino e tudo de bom que as aguarda. Na realidade, imagens desse tipo não mostram o que é o processo de cura da doença, e sim a vida que é possível depois. Mas o tratamento de um transtorno alimentar é definido pelos passos para se chegar até ali. E os bastidores, que podem não ser tão agradáveis quanto as imagens mostram, incluem:

1. Seguir o plano alimentar proposto pelo terapeuta nutricional, mesmo quando você sentir que seu estômago vai explodir porque seu sistema digestivo não tem funcionado adequadamente há tempos. Isso é uma consequência da doença; ele vai voltar a funcionar direito, eu prometo.

2. Jogar fora suas revistas de dieta e de exercício e ler algo que te inspire a buscar e entender seus reais valores. Nada inspira mais confiança do que viver de forma autêntica, reconhecendo aquilo que de fato importa na sua vida.

3. Praticar exercícios de respiração e relaxamento para lidar com a angústia de não se pesar e de comer alimentos difíceis. Seu valor pessoal não é determinado pelo número no visor de um aparelho qualquer.

4. Contar para a equipe que está te tratando a verdade sobre o transtorno alimentar e suas dificuldades em lidar com a doença. Sua honestidade permite à equipe oferecer o melhor tratamento possível.

5. Aceitar o desafio de comer algo realmente difícil, como aquela sobremesa que você prova há anos, mesmo que você chore de culpa até o último pedaço. Um dia você vai conseguir comer com prazer e se lembrar desse momento com compaixão.

6. Encontrar recursos alternativos para lidar com as emoções difíceis ao invés de buscar a comida automaticamente. Você tem condições de cuidar de si mesmo de outro modo.

7. Superar aquela “oportunidade perfeita” para ter uma compulsão e purgar quando ninguém está vendo, mesmo que você se sinta esquisito, como se você estivesse “traindo um melhor amigo”. A doença não é sua amiga. Pelo contrário, ela é seu pior inimigo.

8. Decidir não viajar nas férias porque você ainda não se sente preparado para lidar com contextos alimentares difíceis. Vai chegar o momento em que você estará pronto para enfrentar novas realidades e apreciar tudo que a viagem tem de bom para oferecer.

9. Resistir à urgência de purgar após uma compulsão, mesmo que isso gere um forte desconforto físico e emocional. Respire fundo. Vai passar.

10. Acreditar que a cura do transtorno alimentar vai te proporcionar uma vida muito melhor, mesmo que existam momentos em que você não veja sentido no tratamento e queira desistir. Tenha coragem e siga em frente”

Boa semana a todos!

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dia do lixo


Não se enganem pelo título do post. Esse não é mais um desses dias comemorativos dos quais ninguém nunca ouviu falar. Pelo contrário: ele vem sendo cada vez mais discutido, tanto em textos que explicam sobre sua “importância” e também naqueles que ensinam “como fazer”.

O “dia do lixo” é o que algumas pessoas – dentre elas, para meu grande pesar, alguns nutricionistas – definem como sendo o dia em que se pode comer qualquer coisa. Normalmente, ele se refere àquela situação em que uma pessoa que está fazendo dieta inevitavelmente vai comer os alimentos “proibidos”, provavelmente de forma exagerada e com sensação de culpa.

A primeira coisa que me assusta quando ouço esse termo é que comida não é lixo. Comer é essencial à nossa sobrevivência e faz parte do processo de formação da nossa identidade, daquilo que somos. Uma das coisas que nos difere de algumas espécies e nos torna especiais é a nossa relação com a comida, isto é, o fato de sermos onívoros. Onívoros são aqueles que conseguem os nutrientes essenciais à vida por meio de diversos alimentos. Pensem no urso panda, por exemplo. Ele só vive de bambu. Por um lado parece fácil, ele não precisa lidar com os dilemas e responsabilidades de um mundo cheio de estímulos alimentares e comidas diferentes; mas, quando o bambu acaba, ele não consegue se nutrir. Não é a toa que ele está em extinção...


A segunda coisa que me intriga é: por que usar esse termo? Não consigo pensar num bom motivo. Será que as pessoas pensam que classificar determinadas comidas como “lixo” vai fazer com sejam menos consumidas? Isso não funciona. E não difere muito da boa e velha categorização dos alimentos em “saudáveis” e “não saudáveis”, “proibidos e “permitidos”. Já resumi os malefícios gerados por essa dicotomização da comida aqui e aqui.

O que eu quero dizer é: mesmo que de fato a pessoa acredite que aquela comida é “lixo” e não tenha nada que “preste”, isso não vai impedi-la de comer. Já se sabe que o que determina a escolha e ingestão alimentar NÃO é somente o conhecimento nutricional; aliás, ele nem é um dos principais fatores... Um dos principais é o sabor. E digo mais: quanto mais o indivíduo se proíbe ou acredita ser errado comer determinado alimento, mais ele parece atrativo e prazeroso, ou seja, a probabilidade da pessoa comer mais quando exposta a um alimento que considera “lixo” é imensa. E com certeza ela não vai se sentir bem por isso, pois a palavra “lixo” tem conotações negativas muito fortes.

Acho que está na hora de revermos e questionarmos nosso discurso e nossas crenças.

sábado, 13 de setembro de 2014

Mais um bom motivo para não julgar as pessoas pelo peso

Quando eu falo para as pessoas que trabalho bastante com transtornos alimentares, a primeira pergunta normalmente gira em torno disso:

- “Ah, anorexia, sei... São aquelas meninas que não comem e são bem magras, né...”

Pois bem. Infelizmente esse ainda é o estereótipo que paira sobre os transtornos alimentares:


Mas o que poucas pessoas não se dão conta é que não são só mulheres que têm transtorno alimentar (veja aqui e aqui). E que pacientes com transtornos alimentares nem sempre são tão magros e emaciados. Muitos podem ter peso “normal”. Outros, ainda, são obesos. Esse é o problema em julgar as pessoas pelo peso: você não tem como saber nada sobre as atitudes alimentares de uma pessoa olhando só o seu peso. E isso com certeza tem um impacto forte sobre o trabalho dos profissionais de saúde.

Um estudo australiano recente (veja aqui e aqui) observou um crescimento de quase seis vezes no diagnóstico de anorexia nervosa atípica em adolescentes num período de seis anos (de 2005 a 2010). Os pesquisadores consideraram anorexia nervosa atípica os quadros em que o paciente apresentava todos os critérios diagnósticos para a doença - restrição alimentar severa, levando à perda de peso; medo intenso de ganhar peso ou tornar-se gordo; distúrbios de imagem corporal -, exceto o baixo peso. Ou seja, observando só o peso desses adolescentes, sem investigar de forma mais profunda, seria possível acreditar que eles não tinham problema nenhum. Ledo engano...

Precisamos ouvir e entender melhor nossos pacientes. E para isso precisamos olhar além do peso.

sábado, 6 de setembro de 2014

Estigma da obesidade faz obesos comerem mais


Já escrevi algumas vezes aqui no blog (veja aqui, aqui, aqui, aqui, aqui) sobre o estigma do peso (ou weight bias), que é a discriminação ou estereotipação de pessoas com base em seu peso corporal. Atualmente, as mensagens da mídia e da sociedade em relação ao corpo são tão conflitantes e inadequadas que existe o que podemos chamar de “insatisfação normativa”, ou seja, parece que atualmente todas as pessoas – gordas ou magras – estão insatisfeitas com seus corpos. Mas nós sabemos que quem mais sofre com esse estigma são os obesos.

Já existem estudos mostrando como o estigma da obesidade prejudica a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos, inclusive dificultando a busca por cuidados de saúde. E isso me parece bastante óbvio: se sou magra e tenho dor nos joelhos, provavelmente serei examinada, vão me solicitar exames específicos, vão sugerir exercícios de reabilitação e se for o caso me darão uma medicação para aliviar as dores e tentar amenizar o problema. Agora, se sou gorda e tenho a mesma dor, porque vou me sentar em frente a um profissional que provavelmente vai me mandar emagrecer e mais nada? Não vou nem perder meu tempo...

O quero demonstrar aqui é o relato de muitos pacientes, confirmados por meio de estudos científicos: pessoas obesas não têm o mesmo tratamento de saúde que pessoas magras, mesmo apresentando queixas/patologias semelhantes.

Um estudo qualitativo muito interessante, realizado aqui no Brasil (veja aqui), buscou avaliar a interferência da sociedade no consumo de alimentos por pessoas obesas. Os resultados confirmam algo que na prática já se nota: a sensação de inadequação por ser obeso, reforçada pelas mensagens preconceituosas da sociedade, e o sentimento de culpa por comer alimentos tidos como “proibidos”, faz com que os obesos comam mais. E não menos.

Por isso, acho importante repensarmos nossa conduta como profissionais de saúde diante de pacientes obesos. Vamos mesmo reforçar a ideia de que perder peso é ESSENCIAL para se melhorar a saúde ou vamos estimular MUDANÇAS DE COMPORTAMENTO que tragam benefícios independentemente da perda de peso? Vamos tentar entender com empatia a relação que o indivíduo tem com a comida ou vamos passar mais uma dieta?

Boa semana a todos!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Minhas reflexões sobre o dia do nutricionista

Dia 31 de agosto é comemorado o dia do nutricionista. Todo ano, quando essa data se aproxima, procuro refletir sobre os rumos da minha atuação, meus desafios e minhas recompensas.

Lembro-me até hoje do dia em que, ainda como estudante, me foi plantada a sementinha do que hoje vem a ser o fundamento principal da minha prática: fazer dietas não só não resolve o problema (qualquer que seja ele!) como também é algo nocivo. Isso foi durante meu aprimoramento em transtornos alimentares no Ambulim, onde até hoje tenho o prazer de atuar. Foi nesse curso, inclusive, que tive certeza de que eu queria ser nutricionista e queria ajudar as pessoas a melhorarem sua relação com a comida.

A partir de então (e até hoje), foram incansáveis leituras, cursos e estudo pessoal para de fato construir uma atuação diferente dentro da Nutrição, uma atuação que me fizesse acordar todos os dias satisfeita por estar indo trabalhar. Claro que não foi tão fácil: é cansativo nadar contra a corrente. É delicado atender pessoas que dão tanto valor ao número na balança a ponto de acreditarem que isso determina quem elas são e como devem viver. É difícil, por vezes, lidar com a frustração de que por mais que você se empenhe por um paciente, a chave para a mudança está somente nas mãos dele. Para ser um bom nutricionista, é preciso ainda, na minha opinião, desenvolver e treinar algumas habilidades bastante específicas: escuta ativa, compaixão, paciência, carisma, flexibilidade e empatia. É necessário também saber confiar no próprio feeling, saber captar as mensagens que muitas vezes o paciente não verbaliza – até mesmo por não se dar conta. É preciso manter um certo distanciamento terapêutico, a fim de que as questões dos pacientes não te afetem demais.

Tudo isso dá bastante trabalho...

Mas, para mim, existem muitas recompensas. A gratificação de acordar todos os dias e encontrar sentido em meu trabalho. As devolutivas positivas de cada paciente (que antes me procuravam para “fazer dieta”, e que agora me procuram justamente para nunca mais fazerem uma) e de cada leitor desse blog. Os estudantes e “jovens nutricionistas” que vêm a mim pedindo orientações e ajuda relacionadas à sua atuação. A oportunidade de conhecer pessoas e colegas de profissão maravilhosos, que compartilham da minha visão e com quem muito aprendi (me refiro aqui especialmente aos colegas do Genta).

Tenho orgulho de ser nutricionista porque por meio da minha profissão tenho me tornado uma pessoa melhor, mais humana. Tenho prazer em carregar esse título por ter a certeza de que, por meio dele, é possível ajudar as pessoas a se relacionarem melhor com a comida, e com isso se tornarem mais felizes e saudáveis.

Ao refletir esse ano sobre o dia do nutricionista, percebo que, para mim, o saldo da balança é positivo. E com essa balança eu me importo profundamente.

Feliz dia do nutricionista!

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Melhorando a relação com a comida... Mas só depois de emagrecer.


Não é mistério algum que uma das grandes motivações para se buscar um nutricionista atualmente seja o desejo de emagrecer. Eu sempre explico aos meus pacientes que meu papel não é “emagrecê-los”, e sim ajudá-los a melhorar sua relação com a comida e com o corpo; e que existem muitos outros benefícios quando se tem uma alimentação saudável, benefícios estes desvinculados da perda de peso e exemplificados pelo amigo Cezar Vicente Júnior neste outro post.

Vejam, eu não sou contra o emagrecimento por si só e não sou uma “apologista à obesidade”; só acredito que comer e viver melhor no corpo que temos hoje é o caminho ideal para melhorar nossa qualidade de vida e nossa saúde. Mesmo esse corpo sendo obeso.

Muitas vezes, quando se tira o foco inicial do peso e de fato o indivíduo consegue mudar sua relação com a comida (e consigo mesmo), o emagrecimento é possível. Mas muitas vezes isso também não ocorre. Pelo menos não de imediato. Não posso mentir. E digo isso aos meus pacientes também.

Daí vem a grande pergunta que alguns deles me fazem: então será que eu não posso tentar emagrecer antes (por exemplo, fazendo outra dieta), para me sentir bem, e depois trabalhar minha relação com a comida?

Bom, pela minha experiência, pelos meus estudos e por aquilo que eu acredito, minha resposta é: Não. Não acredito que isso vá funcionar.

Primeiro porque a maioria das pessoas que me procura já fez dietas antes e sabe que todas elas falham. Quando se faz dieta, a relação com a comida torna-se ainda pior. Novamente vai existir a categorização dos alimentos (“bons” e “ruins”) e as regras externas sobre o que e quanto se deve ou não comer. Toda dieta funciona com base na restrição alimentar, e melhorar a relação com a comida implica em permissão alimentar. São conceitos contrários. Quando (e se) a pessoa emagrece fazendo dieta, dificilmente ela vai sentir-se segura para abandonar a restrição voluntariamente e se permitir comer, já que o medo de “botar tudo a perder” e ganhar peso novamente virá com força total.

Além disso, existe o fato de que nada garante que a pessoa vai emagrecer e então ficar satisfeita e feliz, por mais “bizarro” que isso possa soar. Por vezes, a busca pelo emagrecimento camufla outras buscas e anseios em outros domínios da vida do indivíduo. Por isso a terapia se torna por vezes tão essencial: é uma oportunidade de se trabalhar outros aspectos que compõem a autoestima do indivíduo. Como profissionais de saúde, devemos questionar a influência indevida e exagera do peso e forma corporais no nosso senso de valor como indivíduos. Penso que só assim poderemos verdadeiramente ajudar os pacientes que nos procuram.

Claro que alguns pacientes não aceitam bem essa minha resposta e não se convencem de que o caminho que eu proponho possa ser uma alternativa. E eu respeito isso. Não sou a dona da verdade. Mas me mantenho fiel àquilo que acredito. E tenho certeza de que muitos se beneficiam dessa abordagem.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

O que é beleza para você?

Tenho achado muito interessante refletir e estudar sobre como é construída a noção que temos do que é belo ou não para nós. Ou seja: porque olhamos para determinadas coisas/pessoas e obtemos aquela reação agradável e prazerosa que nos diz: “hum, isso eu acho bonito”.

Como diz o ditado, “a beleza está nos olhos de quem vê”, isto é, aparentemente é algo subjetivo que muda de pessoa para pessoa e que muda de tempos em tempos. Entretanto, em todas as épocas, existem padrões de beleza que são construídos com base em questões políticas e culturais e que determinam o que uma grande maioria acha belo. Muitos já ouviram falar, por exemplo, que na Antiguidade e na Idade Média era visto como belo o corpo curvilíneo, que hoje chamaríamos de “cheinho” ou mesmo de “gordo”. Quando viajei para Nova Iorque esse ano, para a Conferência Internacional de Transtornos Alimentares da AED, não pude deixar de tirar a foto abaixo no Metropolitan Museum of Art, retratando o corpo valorizado na Antigo Egito.


Trazendo para um período mais atual, sabe-se que nos anos 60, com o crescimento do movimento feminista, começou a surgir um novo padrão de beleza para o corpo feminino: o corpo magro, andrógino, que buscava ser mais semelhante ao do homem (ao menos na aparência), representado pela modelo Twiggy.


Esse novo corpo que passou a ser valorizado foi uma reação do movimento feminista ao padrão curvilíneo e sensualizado que vigorava, basta lembrar de Marilyn Monroe. Ironicamente, o corpo magro que tinha como objetivo “libertar” a mulher do estereótipo de sex symbol vem sendo usado atualmente para "aprisioná-la" no mundo das dietas e dos transtornos alimentares...


Padrões de beleza sempre vão existir, pois muita gente lucra horrores com eles; basta ver as inúmeras indústrias da dieta e da beleza hoje em dia, que ganham com a nossa insatisfação vendendo a “solução” para nossos problemas: um novo shake, uma nova dieta, uma nova cinta, uma nova maquiagem...

Não estou questionando qual padrão é melhor ou pior, apenas refletindo se não podemos nos abrir para valorizar a beleza que cada um traz consigo. Nosso olhar para o belo depende muitas vezes do quanto nos abrimos para o que é diferente e do quanto nos abrimos para questionar e criticar o padrão que criamos em nossa mente. Enxergar algo como belo não é simplesmente "natural", depende de um esforço ativo da nossa parte para aceitar que as pessoas podem se tornar belas por aquilo que representam em nossas vidas (vejam esse belo texto) e pela maneira como expressam toda sua potencialidade por onde quer que passem. Quantas vezes já não ouvimos a seguinte frase: “aquele/a moço/a é bem bonito/a, mas é tão chato/a...”? E quantas vezes, ao acordarmos de bem com a vida pela manhã, não ficamos “surpresos” por nos acharmos mais bonitos, enquanto que naqueles dias em que desejamos nem termos levantado da cama não podemos nem passar diante do espelho?

É por isso que a minha resposta para o título deste post é a seguinte: beleza, para mim, é um estado de espírito.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Meu amigo chocolate e o brigadeiro de whey protein


Tenho muita curiosidade em entender porque as pessoas comem o que comem. Não só as razões que motivam a busca pela comida – fome, tédio, raiva, tristeza, frio, alegria, rotina, e tantas outras –, mas também as razões que determinam a escolha alimentar em si: por que, por exemplo, escolho comer ovo ou batata frita ou chocolate?

Como já abordado em outros posts, existem vários fatores que influenciam nosso “apetite” específico por determinados alimentos. Um dos gatilhos é justamente a restrição: se acredito que não devo/não posso comer algo, certamente a chance de eu buscar esse alimento num futuro próximo é alta. Quando eu me proíbo de comer um determinado alimento, é como se ele assumisse uma “aura mágica”: ele passa a ser mais atrativo, mais desejado, mais gostoso...

Vamos citar o exemplo do chocolate. Eu consigo entender porque a maioria das pessoas busca e gosta de chocolate, mesmo as que não restringem. Ele tem uma textura agradável, e seu derretimento na boca causa uma sensação confortável e prazerosa. O gosto é atrativo, graças à mistura de leite, açúcar a cacau. Visualmente ele chama a atenção, e não precisa adotar o disfarce do “saudável” para as pessoas gostarem dele (como as barrinhas de cereal, diga-se de passagem!). O chocolate é autêntico.

Eu adoro chocolate. Mas não é por isso que vou trocar uma refeição e matar minha fome com ele.

Agora, vamos citar o exemplo de um alimento que tenho visto muito por aí: o “brigadeiro de whey protein”. Não quero aqui julgar quem o come, mas a pergunta não cala em minha mente: POR QUE?

Qual o objetivo de se colocar um suplemento alimentar com finalidades bastante específicas num alimento que foi criado para saciar vontade? Será que as pessoas de fato estão tentando atingir sua cota diária de proteína por meio dele? Será que elas acreditam que terão menos vontade de comer doce caso consumam whey protein no brigadeiro? Será que elas julgam que ele faz bem? Será que é pelo gosto?

Bem, isto eu duvido.

domingo, 13 de julho de 2014

Sobre "gordices"


Nessa época de Copa do Mundo, não foram poucas as vezes em que ouvi pacientes, amigos e familiares comentando e postando fotos em redes sociais sobres as “gordices” consumidas. “Gordices” é um termo que refere-se, de modo geral, a tudo aquilo que as pessoas comem acreditando que não deveriam estar comendo. Outros termos similares são “gulodices”, “porcarias”, “besteiras”.

Eu particularmente não gosto e procuro não utilizar nenhum desses termos, pois todos implicam em um julgamento moral daquilo que comemos. Mas me incomoda de forma especial a palavra “gordice”.

“Gordice” perpetua o estigma da obesidade, já que passa a ideia errônea e inadequada de que só gordos comem determinados tipos de alimentos. Será mesmo que só gordos comem chocolate/brigadeiro/pão francês/coxinha? E se esses alimentos são “gordices”, alface, por exemplo, é o que? “Magrice”? E só magros comem alface??

Além disso, quando alguém diz que comeu uma “gordice”, ele está querendo dizer que cometeu uma “indulgência”, que comeu algo “proibido”; e quando algo é proibido, se torna mais desejável, se torna uma transgressão... E quem é que não gosta de uma transgressão?!

Ou seja: se você se refere a um alimento como “gordice”, pode ter certeza de que a chance de você ter mais vontade de comê-lo aumenta. Assim como a culpa que vem ao comer, e que impede que você de fato sinta prazer comendo.

Proponho um exercício: tente se monitorar e perceber quantas vezes você pensa e utiliza a palavra “gordice” em sua rotina. Tente deixá-la de lado, tente aceitar que o que você está comendo é apenas um chocolate (uma torta, uma batata frita, um pastel...).Esse é um dos passos para que você consiga de fato melhorar sua relação com a comida.

Boa semana a todos!

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Em paz com o corpo


O texto de hoje foi retirado da edição de julho/2014 da revista Vida Simples. Foi escrito por Lucas Tauil de Freitas. Mostra uma outra maneira de visualizarmos e vivenciarmos o corpo, com base em sua funcionalidade e nos detalhes (por vezes banais) que trazem significado para nossas vidas.

Boa semana!

"Cresci um menino capacete. Apesar da infância no interior, vivia dentro de casa, assistia TV demais e me movimentava pouco, bem pouco. Foi já moço que fiz as pazes com o corpo. Descobri meu caminhar no grupo de teatro da faculdade. Ainda me divirto ao lembrar da cara de surpresa com que ouvi que não sabia andar. Depois vieram os ensinamentos de como respirar por meio da ioga. A prática foi um encontro com o fluxo e o movimento consciente. A libertação da vaidade e da patrulha estética demorou mais, mas veio também. Porém, foi o mar que selou meu amor com a pele que me comporta. Encontro dos ambientes dos meus sonhos.

Braços fortes que puxam cabos e sobem as velas que nos impulsionam. Mãos hábeis que amassam nosso pão e remam para as praias do nosso caminho, que agarram a corrente que nos mantêm seguros na ancoragem. Dedos precisos que tecem e consertam de tudo. Pernas que me levam de lá para cá, que me permitem a alegria de deslizar sobre uma onda. Peito largo que me dá a plenitude do abraço de minhas filhas, que acolhe minha companheira nas noites frias.

Sentidos meus, lapidados na natureza. Olhos que se aguçam no horizonte amplo do oceano e nos movimentos focados da ioga. Ouvidos que despertam para o silêncio e também para os sons ritmados do navegar. Pele que sente o vento. Paladar que se perde em beijos lentos, e também encontra os sabores estrangeiros e picantes na estrada. Cheiro de sal e desejo, faro fiel que me guia pacato, imperceptível. Respirar que silencia minha mente inquieta. Sentido outro que me faz ver além da carne, que desdobra o sólido em milagre.

Frágil e mágico, corpo que é minha ponte para este mundo. Igreja onde vive o divino em mim. Meu corpo amigo, que todas as manhãs hidrato com lentos copos de água e estico em dedicadas posturas de ioga. Eu físico que senta em silêncio, que escuta e não pede. Minha carne nutrida com alimentos que me fazem bem e pensamentos serenos, fundação da minha alma e dos meus mais variados desejos. Corpo que é o veículo da minha expressão, ferramenta e matéria-prima da minha arte. Caminho do meu querer.

Presença minha na comunidade. Mãos que não apenas oram, mas cuidam de mim mesmo e do outro.

Meu habitat que não é tudo o que sou, mas é portal da minha alma, carregador de meus olhos. Meu corpo que encontra outro corpo, canal do encontro dos nossos seres. Viva a carne, viva a pele, viva a alma."

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Meça em amor

No musical da Broadway “Rent” (um dos meus favoritos e que tem até filme), existe uma música linda chamada “Seasons of love” (“Estações do amor”). Nela, os cantores se perguntam como medir um ano: em minutos, em segundos, em bons momentos... (veja o clipe aqui e veja a tradução da letra aqui).

Infelizmente, muitas pessoas estão hoje medindo o valor e o significado de suas vidas em números, mais especificamente aqueles vistos na balança. O foco no peso – ou em sua perda – tornou-se complicado devido ao significado que ele assumiu na vida das pessoas. E isso eu vejo diariamente em minha prática:

1. Pessoas cujo principal “motivador” para adotar comportamentos saudáveis é o emagrecimento. Infelizmente, emagrecer não é um bom motivador a longo prazo e não depende exclusivamente da “responsabilidade pessoal” de cada um. Ganhar ou perder peso vai muito além daquela diferença entre o que comemos e o que gastamos. Existem diversos outros fatores envolvidos nesses processos, como: liberação de hormônios; acesso a alimentos e espaços seguros para a prática de atividade física; interação entre nutrientes no corpo; exposição a poluentes (da atmosfera e aqueles usados nas lavouras); grau de estresse; genética; presença de bactérias intestinais “saudáveis”, dentre outros.

2. Pessoas que buscam perder peso a fim de melhorarem sua autoestima. Para isso, buscam dietas, que levam ao “efeito sanfona” e ao descontrole alimentar, que por sua vez contribuem com uma redução ainda maior da autoestima e do senso de valor do indivíduo.

A vida é muito curta para que gastemos tanta energia e esforço em busca de algo que não é garantia inerente de felicidade, de melhor aceitação e interação social, de sucesso, nem de nada. Quando pacientes me procuram e estão muito obcecados com a perda de peso, e isso invariavelmente está atrapalhando em sua relação com a comida, eu peço para eles imaginarem duas situações:

1. Se o mundo acabasse hoje, quanto tempo você gastaria pensando em seu peso? O quanto ele importaria?

2. Feche os olhos e lembre-se de um momento especial em sua vida: o nascimento de um filho, o casamento, a notícia de uma promoção no trabalho, uma tarde brincando com seu animal de estimação... Tente reviver os detalhes e as sensações vividas naquele momento. Depois pergunte-se: o quanto de fato o peso influenciou naquilo que você estava sentindo? Se você fosse mais gordo/mais magro, o momento teria sido mais/menos especial e importante?

Então, como medir a nossa vida? Faça como diz o refrão da música: meça em amor.

sábado, 21 de junho de 2014

Das ironias (e bizarrices) da vida


Caros leitores! Vou começar abordando a bizarrice:

Pesquisadores das Ilhas Canárias (veja estudo aqui) conseguiram aprovar em algum comitê de ética o seguinte estudo: colocaram 15 homens com excesso de peso para receber uma dieta líquida de 320kcal/dia por quatro dias. Não bastasse isso, nesse período eles realizaram 9h/dia (isso mesmo, nove horas ao dia!) de exercício, mais especificamente caminhada a 4,5km/h. O “grande” achado foi que, ao final desse período, os indivíduos haviam perdido em média 4,9kg, sendo 2,8kg de gordura. Ao final de um ano, eles apresentaram reganho de 1kg de gordura.

Algumas coisas me chamaram a atenção nesse estudo:

1. Em relação às dosagens bioquímicas, somente os exames de colesterol total e LDL apresentaram reduções significativas com a intervenção após quatro semanas. Níveis de glicemia, insulina, triglicérides e HDL – que são importantes parâmetros de saúde, em oposição ao peso corporal – não sofreram alterações...

2. Não foi avaliada a mudança de comportamentos com a intervenção. Imagino o que deve ter acontecido com a alimentação dessas pessoas após quatro dias de restrição intensa... Compulsão alimentar, talvez? E como será que esses indivíduos encaram hoje a prática de atividade física?

3. Na seção “limitações” do estudo, os autores colocaram que TODOS os indivíduos reclamaram de dores musculares e nas articulações. E colocam um alerta: “indivíduos que estão menos motivados provavelmente não tolerariam esse tipo de intervenção”. Sério mesmo que eles acharam espantoso o fato de indivíduos que se exercitaram nove horas ao dia consumindo 320kcal sentirem dor? E outra: o que isso tem a ver com motivação?

4. Por que alguém decide fazer um estudo como este? O quão factível esse protocolo é na vida real das pessoas?!

Agora a ironia:

Pesquisadores chineses (artigo a ser publicado no Journal of Sport and Health Science, de título: “Metabolic response to 6-week aerobic exercise training and dieting in previously sedentary overweight and obese pre-menopausal women: a randomized trial”) colocaram 90 mulheres sedentárias com excesso de peso para participarem de um programa de exercícios (muito bem desenvolvido, por sinal, levando em conta medidas de frequência cardíaca de cada uma) ou de uma intervenção nutricional com objetivo de perda de peso, durante seis semanas. Ao final do período, as voluntárias do grupo exercício não perderam peso e nem gordura corporal, mas apresentaram melhoras significativas em resistência à insulina, glicemia e ácidos graxos livres. Já as mulheres que receberam orientações nutricionais para emagrecimento perderam peso, mas não apresentaram benefícios metabólicos (alterações positivas nos exames citados acima).

Ou seja: nesses dois estudos, perda de peso não resultou em melhorias à saúde (ao menos no que diz respeito a parâmetros metabólicos). Já mudanças de comportamentos (factíveis e de bom senso) sim.

Boa semana a todos!

domingo, 15 de junho de 2014

A ilusão do controle


Esta semana optei por transcrever um texto do psicanalista Contardo Calligaris, que fala sobre nossa preocupação com o peso e o corpo. Foi publicado em seu livro "Todos os reis estão nus" (aliás, eu recomendo!).

"Cuidado com o peso e a forma"
"Na semana passada, celebrando o Pessach ou a Páscoa, muitos jantaram ou almoçaram em família. Aposto que, em algum momento, diante da fartura e das guloseimas que estavam na mesa, a conversa tratou dos planos e dos esforços de cada um para manter a linha, emagrecer ou ganhar peso (músculos, não gordura, é claro), em suma, para conseguir dar ao corpo uma forma "satisfatória". Para essa conversa acontecer, não foi preciso que houvesse magros ou obesos à mesa. A inquietação com o peso e a forma não é efeito do estado de nosso corpo. Ela se tornou onipresente nas últimas duas ou três décadas: sua difusão coincide com o aumento dos transtornos alimentares (bulimia e anorexia), mas é, de fato, uma espécie de transtorno alimentar em si, um transtorno alimentar da conversa e do pensamento.

É citada por toda a parte (sem mais precisões) uma pesquisa segundo a qual 81% das crianças (norte-americanas) de dez anos estariam com medo de ser gordas e 50% das meninas dessa idade declarariam estar fazendo regime. Agradeceria aos leitores que me ajudassem a encontrar o texto original dessa pesquisa, que, segundo algumas fontes, seria do começo dos anos 1990. De todo modo, mesmo que a tal pesquisa seja uma lenda, sua popularidade confirma um fenômeno que verificamos todos os dias: hoje, a forma e o peso preocupam até as crianças.

Nesta altura, seriam esperadas acusações contra os nossos hábitos alimentares, contra a vida sedentária e contra os ideais impossíveis promovidos pela cultura de massa e pela indústria do regime e da forma física. Em suma, estaríamos todos pensando no peso por culpa da preguiça, do Mc Donald's, da Barbie e do GI Joe, bonecos que parecem ter sido inventados para que, desde a infância, ninguém se contente com o corpo que tem. Foi com essa expectativa que li o número de fevereiro da Counseling Today (revista da American Counseling Association), consagrado aos transtornos alimentares e à imagem do corpo. Expectativa frustrada, felizmente: num longo artigo sobre a obsessão com o peso, é entrevistada uma terapeuta, Anna Viviani, que oferece uma explicação específica para o nosso interesse pelo peso e pela forma, com ou sem transtornos alimentares propriamente ditos. Resumindo, ela entende assim: quando alguém sente que tudo na vida está fora do controle, sente também que os alimentos, o peso, o exercício são coisas que, em princípio, poderiam ser controladas.

Tanto faz, aliás, que alguém consiga seguir um regime à risca, emagrecer ou ganhar peso e fazer ginástica regularmente. O que importa é que as consultas, as propostas, as leituras e as conversas intermináveis sobre dieta e exercício têm um valor em si: elas mantêm viva a promessa de um controle - que é difícil, mas que é, em tese, possível. À diferença do que acontece, em geral, com a nossa vida amorosa e profissional, acreditamos (com certa razão) que o nosso peso e nossa forma dependem de nós. Nesse campo, podemos não fazer o necessário, mas sempre se trata de um não fazer "ainda": um dia, faremos e, quando fizermos o necessário, controlaremos o nosso peso e a nossa forma.

É tentador propor uma equação: quanto menos controle temos de nossa vida (amorosa, profissional, social e mesmo moral), mais nos preocupamos com peso e forma, que, bem ou mal, podem ser controlados. Numa direção parecida, no mesmo artigo, outra terapeuta, Erica Ritzu, resume assim a fala de um paciente com transtornos alimentares: 'se você não me escuta e não deixa nunca que a minha opinião conte, pelo menos posso escolher não comer nada'. De repente, a greve de fome dos presos políticos pode ser um modelo para entender o que acontece nos transtornos alimentares e em nossa preocupação com o peso e a forma.

Certo, na greve de fome os presos põem a vida em risco para promover uma causa (a sua própria ou outra). Mas também exercem, heroicamente, o que lhes sobra de liberdade: não são ouvidos, estão encarcerados, não podem nada, mas há algo que eles controlam: a sua própria ingestão de alimentos. É o que sugere Anna Viviani, ao interpretar nossa obsessão com regime e exercício: quem não controla nada pode, como último recurso, controlar sua alimentação, o seu peso e a sua forma.

Bom, só resta admitir que não controlamos nada, assim como os presos."

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Querer emagrecer


Muitos psicanalistas afirmam que um dos mais importantes recursos terapêuticos é confiar em nosso próprio feeling, isto é, confiar na nossa impressão inicial sobre o paciente, naquilo que sentimos ou percebemos antes de pensar.* Na minha opinião, isso é especialmente importante quando lido com pacientes com transtornos alimentares ou que apresentem uma relação complicada com a comida e com o corpo, mas que se escondem por trás do famoso “quero emagrecer”.

Não há nada fundamentalmente errado em querer emagrecer, mas quando o paciente me diz que essa é a motivação que o levou a me procurar, eu sempre procuro questionar o porquê (detalhe: não importa se o paciente é magro ou gordo). Não para julgar ou decidir se a justificativa dada é válida ou não, mas sim para de fato tentar entender quais as expectativas – por vezes irreais – por trás do desejo de perder peso. Eu não costumo assumir que é “normal” estar insatisfeito com o corpo e tentar mudá-lo porque essa é a tônica dominante nos dias de hoje. Eu não acho que seja simplesmente válido emagrecer “só dois quilinhos” porque afinal “todo mundo o quer”. Já faz algum tempo que aprendi a separar o “comum” do “normal”.

Voltando à questão de seguir o feeling, acredito que isso seja um pouco complicado numa sociedade em que comportamentos e atitudes patológicos foram progressivamente “normalizados”. Um colega da área da saúde veio me perguntar outro dia se eu não achava “ok” a pessoa vomitar de vez em quando, num dia de festa, por exemplo, quando tivesse comido demais, a fim de “se sentir melhor”. Ou mesmo “usar um laxantezinho” para dar “aquela limpada”... Ou seja, como orientar pacientes se aquilo em que acreditamos está distorcido e adoentado?!

Respondendo ao questionamento feito por este colega: não, provocar o vômito e usar laxante com finalidade de compensar a ingestão alimentar não é ok, não é normal, é patológico! Inclusive, um estudo recente do International Journal of Eating Disorders (veja aqui) verificou que mulheres com o que foi chamado de “transtorno alimentar compensatório” (definido por: uso de exercício excessivo e/ou períodos de jejum para compensar a ingestão alimentar e/ou controlar o peso; ocorrendo pelo menos duas vezes por semana nos últimos três meses; e na ausência de episódios objetivos de compulsão alimentar) apresentaram maiores distúrbios de imagem corporal, presença de alimentação transtornada, ansiedade e perfeccionismo que indivíduos controles.

Como disse o personagem Carlo Antonini, do escritor Contardo Calligaris, “algumas pessoas chegam aparentando a maior serenidade, mas estão à beira de uma crise que, de alguma forma, elas pressentem: pedem uma terapia, mas o que elas de fato procuram é um lugar onde lhe seja possível atravessar a loucura com um mínimo de amparo”.

* Dois livros muito interessantes que falam sobre o relacionamento terapêutico são: “Desafios da terapia” (Irvin Yalom, Ediouro) e “A mulher de vermelho e branco” (Contardo Calligaris, Companhia das Letras).

domingo, 1 de junho de 2014

Buscando novos olhares


Esses dias assisti a um breve documentário italiano (veja aqui) chamado “Il corpo delle donne” (“O corpo das mulheres”). A produtora – e narradora – analisa a representação da mulher pela mídia televisiva italiana, colocando que a presença feminina serve quase que somente para contentar os desejos masculinos. O vídeo mostra que a mulher foi reduzida a um mero objeto sexual, lutando contra o tempo por meio de diversas intervenções cirúrgicas. A mensagem mais marcante que fica é que as mulheres não são mais autênticas porque talvez não reconheçam mais seus próprios desejos, aqueles mais profundos. “O espelho serve muitas vezes para esconder ao invés de revelar”.

Pensei muito sobre o documentário durante a semana, pois de fato estamos mergulhados num mundo de imagens manipuladas, imagens que sedam e seduzem. Sedam porque começamos a buscar nas pessoas reais algo que não é comum a elas, aquela beleza “excepcional” que as imagens retocadas e “photoshopadas” revelam; seduzem porque são imagens glamourizadas, que transmitem a ideia de que tudo é possível mediante o consumo de determinados produtos e de que a vida certamente é melhor quando se encaixa em um determinado padrão de beleza vigente. Isso é tão sério e tão real a ponto de existirem pessoas que baseiam o valor de seu dia (talvez não de forma consciente) com base naquilo que enxergam no espelho pela manhã: se a imagem agrada, o dia corre bem; se não, é uma sucessão de fracassos. Um paciente meu, por exemplo, espantou-se quando eu neguei ficar me observando nua no espelho após uma festa pra ver o “tamanho do estrago” que aquilo que eu comi gerou em meu corpo. Pra ele isso era algo comum, trivial, e pior de tudo: normal.

Aproveito para transcrever aqui o trecho de um texto que gosto muito e que tem tudo a ver com este tema, cujo título é “Outro olhar, outra visão”:

“Vivemos sob o signo do olhar, sob o impacto da imagem, da sociedade do espetáculo. Nunca como hoje o olhar adquiriu tanta soberania e status diante dos outros sentidos; no entanto, é o sentido mais violentado pela quantidade de imagens despejadas sobre nós a todo momento. O ser humano primitivo tinha um olhar limitado pelas suas necessidades; já o ser humano moderno, devido à complexidade da vida, ao progresso da ciência e da tecnologia, está ficando com um olhar truncado pelas imposições artificiais criadas; cerceado em sua visão, ele não sente a realidade; agredido pelo acúmulo de imagens, ele não se deixa afetar por nenhuma delas. Vê tudo e não olha nada. Treinado para ver o mundo através da lente das grandes redes de poder, de manipulação e de acordo com seus interesses, o olhar estreita-se, o mundo torna-se opaco e a superficialidade da visão não capta o mistério das coisas e das pessoas. Marcada pelo olhar do racionalismo, a pessoa tudo examina, compara, esquadrinha, mede, separa... Mas nunca exprime. Daí o olhar reprimido, insensível, frio, duro, ríspido. Este é o pecado contra o olhar: olhar supérfluo e imediatista, olhar esquizofrênico e narcisista, olhar morno e sem vibração... Nesse olhar não há lugar para a admiração, nem para a acolhida e a presença do outro. Só existe o olhar que fixa, escraviza e aliena. Nossa civilização, que já ultrapassou a era do trabalho escravo, ainda está na era do olhar escravo.” (Padre Adroaldo Palaoro, SJ)

Que possamos todos sentir mais e olhar menos; que possamos acalmar a expectativa do nosso olhar; que possamos ver os outros – e a nós mesmos – com os “olhos do coração”.

Boa semana!