segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O processo de cura de um transtorno alimentar


Este final de semana estive revendo alguns materiais do congresso deste ano da Academy for Eating Disorders, em Nova York, e encontrei o relato de uma paciente que conseguiu se curar do transtorno alimentar, publicado originalmente no site EatingDisordersRecoveryToday.com. Resolvi traduzi-lo para vocês. Acredito que seja útil para todos que estejam trilhando o difícil – mas recompensador! – caminho da cura, quer seja de um transtorno alimentar propriamente dito ou mesmo de uma relação complicada com a comida.

Boa leitura!

“Muitas imagens de centros de tratamento para transtornos alimentares mostram uma pessoa no topo de uma montanha, sorrindo de braços abertos, abraçando o destino e tudo de bom que as aguarda. Na realidade, imagens desse tipo não mostram o que é o processo de cura da doença, e sim a vida que é possível depois. Mas o tratamento de um transtorno alimentar é definido pelos passos para se chegar até ali. E os bastidores, que podem não ser tão agradáveis quanto as imagens mostram, incluem:

1. Seguir o plano alimentar proposto pelo terapeuta nutricional, mesmo quando você sentir que seu estômago vai explodir porque seu sistema digestivo não tem funcionado adequadamente há tempos. Isso é uma consequência da doença; ele vai voltar a funcionar direito, eu prometo.

2. Jogar fora suas revistas de dieta e de exercício e ler algo que te inspire a buscar e entender seus reais valores. Nada inspira mais confiança do que viver de forma autêntica, reconhecendo aquilo que de fato importa na sua vida.

3. Praticar exercícios de respiração e relaxamento para lidar com a angústia de não se pesar e de comer alimentos difíceis. Seu valor pessoal não é determinado pelo número no visor de um aparelho qualquer.

4. Contar para a equipe que está te tratando a verdade sobre o transtorno alimentar e suas dificuldades em lidar com a doença. Sua honestidade permite à equipe oferecer o melhor tratamento possível.

5. Aceitar o desafio de comer algo realmente difícil, como aquela sobremesa que você prova há anos, mesmo que você chore de culpa até o último pedaço. Um dia você vai conseguir comer com prazer e se lembrar desse momento com compaixão.

6. Encontrar recursos alternativos para lidar com as emoções difíceis ao invés de buscar a comida automaticamente. Você tem condições de cuidar de si mesmo de outro modo.

7. Superar aquela “oportunidade perfeita” para ter uma compulsão e purgar quando ninguém está vendo, mesmo que você se sinta esquisito, como se você estivesse “traindo um melhor amigo”. A doença não é sua amiga. Pelo contrário, ela é seu pior inimigo.

8. Decidir não viajar nas férias porque você ainda não se sente preparado para lidar com contextos alimentares difíceis. Vai chegar o momento em que você estará pronto para enfrentar novas realidades e apreciar tudo que a viagem tem de bom para oferecer.

9. Resistir à urgência de purgar após uma compulsão, mesmo que isso gere um forte desconforto físico e emocional. Respire fundo. Vai passar.

10. Acreditar que a cura do transtorno alimentar vai te proporcionar uma vida muito melhor, mesmo que existam momentos em que você não veja sentido no tratamento e queira desistir. Tenha coragem e siga em frente”

Boa semana a todos!

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dia do lixo


Não se enganem pelo título do post. Esse não é mais um desses dias comemorativos dos quais ninguém nunca ouviu falar. Pelo contrário: ele vem sendo cada vez mais discutido, tanto em textos que explicam sobre sua “importância” e também naqueles que ensinam “como fazer”.

O “dia do lixo” é o que algumas pessoas – dentre elas, para meu grande pesar, alguns nutricionistas – definem como sendo o dia em que se pode comer qualquer coisa. Normalmente, ele se refere àquela situação em que uma pessoa que está fazendo dieta inevitavelmente vai comer os alimentos “proibidos”, provavelmente de forma exagerada e com sensação de culpa.

A primeira coisa que me assusta quando ouço esse termo é que comida não é lixo. Comer é essencial à nossa sobrevivência e faz parte do processo de formação da nossa identidade, daquilo que somos. Uma das coisas que nos difere de algumas espécies e nos torna especiais é a nossa relação com a comida, isto é, o fato de sermos onívoros. Onívoros são aqueles que conseguem os nutrientes essenciais à vida por meio de diversos alimentos. Pensem no urso panda, por exemplo. Ele só vive de bambu. Por um lado parece fácil, ele não precisa lidar com os dilemas e responsabilidades de um mundo cheio de estímulos alimentares e comidas diferentes; mas, quando o bambu acaba, ele não consegue se nutrir. Não é a toa que ele está em extinção...


A segunda coisa que me intriga é: por que usar esse termo? Não consigo pensar num bom motivo. Será que as pessoas pensam que classificar determinadas comidas como “lixo” vai fazer com sejam menos consumidas? Isso não funciona. E não difere muito da boa e velha categorização dos alimentos em “saudáveis” e “não saudáveis”, “proibidos e “permitidos”. Já resumi os malefícios gerados por essa dicotomização da comida aqui e aqui.

O que eu quero dizer é: mesmo que de fato a pessoa acredite que aquela comida é “lixo” e não tenha nada que “preste”, isso não vai impedi-la de comer. Já se sabe que o que determina a escolha e ingestão alimentar NÃO é somente o conhecimento nutricional; aliás, ele nem é um dos principais fatores... Um dos principais é o sabor. E digo mais: quanto mais o indivíduo se proíbe ou acredita ser errado comer determinado alimento, mais ele parece atrativo e prazeroso, ou seja, a probabilidade da pessoa comer mais quando exposta a um alimento que considera “lixo” é imensa. E com certeza ela não vai se sentir bem por isso, pois a palavra “lixo” tem conotações negativas muito fortes.

Acho que está na hora de revermos e questionarmos nosso discurso e nossas crenças.

sábado, 13 de setembro de 2014

Mais um bom motivo para não julgar as pessoas pelo peso

Quando eu falo para as pessoas que trabalho bastante com transtornos alimentares, a primeira pergunta normalmente gira em torno disso:

- “Ah, anorexia, sei... São aquelas meninas que não comem e são bem magras, né...”

Pois bem. Infelizmente esse ainda é o estereótipo que paira sobre os transtornos alimentares:


Mas o que poucas pessoas não se dão conta é que não são só mulheres que têm transtorno alimentar (veja aqui e aqui). E que pacientes com transtornos alimentares nem sempre são tão magros e emaciados. Muitos podem ter peso “normal”. Outros, ainda, são obesos. Esse é o problema em julgar as pessoas pelo peso: você não tem como saber nada sobre as atitudes alimentares de uma pessoa olhando só o seu peso. E isso com certeza tem um impacto forte sobre o trabalho dos profissionais de saúde.

Um estudo australiano recente (veja aqui e aqui) observou um crescimento de quase seis vezes no diagnóstico de anorexia nervosa atípica em adolescentes num período de seis anos (de 2005 a 2010). Os pesquisadores consideraram anorexia nervosa atípica os quadros em que o paciente apresentava todos os critérios diagnósticos para a doença - restrição alimentar severa, levando à perda de peso; medo intenso de ganhar peso ou tornar-se gordo; distúrbios de imagem corporal -, exceto o baixo peso. Ou seja, observando só o peso desses adolescentes, sem investigar de forma mais profunda, seria possível acreditar que eles não tinham problema nenhum. Ledo engano...

Precisamos ouvir e entender melhor nossos pacientes. E para isso precisamos olhar além do peso.

sábado, 6 de setembro de 2014

Estigma da obesidade faz obesos comerem mais


Já escrevi algumas vezes aqui no blog (veja aqui, aqui, aqui, aqui, aqui) sobre o estigma do peso (ou weight bias), que é a discriminação ou estereotipação de pessoas com base em seu peso corporal. Atualmente, as mensagens da mídia e da sociedade em relação ao corpo são tão conflitantes e inadequadas que existe o que podemos chamar de “insatisfação normativa”, ou seja, parece que atualmente todas as pessoas – gordas ou magras – estão insatisfeitas com seus corpos. Mas nós sabemos que quem mais sofre com esse estigma são os obesos.

Já existem estudos mostrando como o estigma da obesidade prejudica a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos, inclusive dificultando a busca por cuidados de saúde. E isso me parece bastante óbvio: se sou magra e tenho dor nos joelhos, provavelmente serei examinada, vão me solicitar exames específicos, vão sugerir exercícios de reabilitação e se for o caso me darão uma medicação para aliviar as dores e tentar amenizar o problema. Agora, se sou gorda e tenho a mesma dor, porque vou me sentar em frente a um profissional que provavelmente vai me mandar emagrecer e mais nada? Não vou nem perder meu tempo...

O quero demonstrar aqui é o relato de muitos pacientes, confirmados por meio de estudos científicos: pessoas obesas não têm o mesmo tratamento de saúde que pessoas magras, mesmo apresentando queixas/patologias semelhantes.

Um estudo qualitativo muito interessante, realizado aqui no Brasil (veja aqui), buscou avaliar a interferência da sociedade no consumo de alimentos por pessoas obesas. Os resultados confirmam algo que na prática já se nota: a sensação de inadequação por ser obeso, reforçada pelas mensagens preconceituosas da sociedade, e o sentimento de culpa por comer alimentos tidos como “proibidos”, faz com que os obesos comam mais. E não menos.

Por isso, acho importante repensarmos nossa conduta como profissionais de saúde diante de pacientes obesos. Vamos mesmo reforçar a ideia de que perder peso é ESSENCIAL para se melhorar a saúde ou vamos estimular MUDANÇAS DE COMPORTAMENTO que tragam benefícios independentemente da perda de peso? Vamos tentar entender com empatia a relação que o indivíduo tem com a comida ou vamos passar mais uma dieta?

Boa semana a todos!