quarta-feira, 15 de abril de 2015

Carta ao corpo: um exercício transformador


Uma das coisas mais importantes quando queremos melhorar nossa relação com quem quer que seja é estabelecer e incentivar uma comunicação assertiva, certo? Falar aquilo que sentimos, sem no entanto culpabilizar ou agredir o outro... Uma comunicação sincera e ao mesmo tempo gentil, sempre que possível. Por isso, gosto bastante de pedir aos meus pacientes que escrevam uma carta ao próprio corpo, especialmente para aqueles que possuem uma relação difícil com ele e que sofrem com distúrbios de imagem corporal. Esse exercício de escrita é catártico, abre um canal de comunicação direta com o corpo, possibilitando assim uma transformação (mesmo que pequena) da relação entre o indivíduo e si mesmo. Afinal, nós somos o nosso corpo! Não existimos sem ele, estamos integrados!

O texto abaixo foi uma paciente minha que escreveu, e ela me autorizou publicá-lo aqui no blog para a apreciação de vocês (sim, pois é muito poético!).  

“Querido Corpo, Ilustríssimo Corpo,

Qual pronome de tratamento que você prefere? Nossa comunicação é tão rara e fugidia que até decidir o pronome tá difícil. Isso me faz lembrar outra lambança: a pessoa. Sim, porque a gente (ou ao menos eu) estamos acostumados a pensar o corpo em terceira pessoa – aprendi essa sacada com a Marília Coutinho, neste post do Blogueiras Feministas – e pensamos o corpo não em primeira pessoa, como deveria ser. Temos pouquíssima prática em “corpar”, ou seja, ser o próprio corpo. Daí é bastante confuso pensar o você-corpo nas evocações de segunda pessoa (nem vou mencionar o embrólio que o “você” e o “tu” apresentam na variante brasileira da língua).

Sem decidir o pronome de tratamento, digo que minha relação contigo apenas aparece em primeira pessoa em situações bastante específicas: quando faço amor, sexo ou, na mais bonita das hipóteses, os dois juntos. Daí eu sou você tudo junto. Também quando tenho crises de asma e não consigo existir fora de você e respirar. Ainda quando danço, momento em que sinto que tua presença é a minha. Ou ainda quando canto. Embora ande cantando ou dançando pouquíssimo para te visitar. Não é agradável. Por isso, comecei falando de gramática. Pra rodear.

Daí chegamos ao ponto. Às vezes, não te reconheço. Diria que na maior parte dos dias e noites. Você-corpo é um ente abstrato. Descrito em números, 54, 69, 70. Descrito em taxas de colesterol, açúcar e triglicérides. Descrito em ordens do rádio, os olhares no ponto de ônibus, nas broncas da minha mãe.  Você não se cuida. Os velhos chavões. Praticar exercícios. Emagrecer. Cuidar da saúde. Ao menos, passo filtro solar. E fio dental. E penteio meu cabelo. Cabelo cheio de tintura, porque ainda não tenho cabelos brancos e porque gosto de cabelos tingidos. Cabelo picotado na diversão de cortar o próprio cabelo. Talvez o cabelo seja uma presença tua, você-corpo, que eu sei que é minha.

Reli meus poemas que falam do tema. Habitar o próprio corpo. Encontrei aquela nota melancólica. A dificuldade. O julgamento dum alguém (quem atende por esse outro?). Depois mando os poemas, porque agora estou atrasada. Sim, estou atrasada e decidi escrever logo essa carta que a Carol pediu porque estava me angustiando. Fiz listas. Organizei ideias. Mas agora-aqui-contigo sempre é muito mais complicado.

A verdade é que não sei, não decidi ainda se quero te chamar de você. Muito menos de “eu”. Sabe como geralmente me descrevem? “Uma menina inteligente”. Disso decorrem duas coisas: jura que sou ainda “menina”, se já tenho 35 anos? Gosto que me chamam de “inteligente”, porque assim se reforça a ideia: não preciso ter você-corpo pra existir e ser elogiada. Imagino que nada disso seja agradável de ler, desculpa, mas estamos nessa tentativa de pingos nos is.

Vou pensar mais em tudo, prometo.

Aproveita que você é a pessoa do lado físico e também me escreva.

Com dificuldades e com amor,

Eu-mesma.”

Confesso que fiquei emocionada ao ver o mergulho que essa paciente fez em si mesma. É preciso coragem e disposição. Pois essa é a verdade essencial: para se melhorar a relação com o corpo, é fundamental haver intenção. A pessoa precisa querer sair do ciclo de autoflagelação e ódio ao corpo. É preciso deixar as culpas e mágoas de lado, por mais difícil que seja esse processo. É preciso se tratar com um pouco mais de autocompaixão.

Como reflexão final na consulta, chamei a atenção da autora quanto à parte em que ela coloca como seu corpo é descrito atualmente (“Descrito em números, 54, 69, 70. Descrito em taxas de colesterol, açúcar e triglicérides. Descrito em ordens do rádio, os olhares no ponto de ônibus, nas broncas da minha mãe.”). Questionei a ela como ela descreveria seu corpo, que unidades de medida usaria... Já que cabe somente a ela definir isso. O resultado foi outra belíssima composição escrita, que publicarei no blog semana que vem.

Bom feriado a todos!


OBS: uma amiga nutricionista, Alessandra Fabbri, também publicou no blog do Genta (Grupo Especializado em Nutrição e Transtornos Alimentares) uma carta ao corpo de uma paciente sua. Veja aqui

Um comentário:

  1. Faz uns meses li esse post e achei super interessante. Ele me fez pensar muito nos princípios da Comunicação Não Violenta, aos quais fui apresentada por uma amiga querida e que tento aplicar na minha vida todos os dias. Os princípios incluem assertividade, empatia, gentileza propostos pelo texto.
    Consegui estabelecer uma comunicação não violenta com diversas pessoas, conhecidas e não tão conhecidas, em diversas situações. Mas nunca tive coragem de estabelecer uma comunicação não violenta com meu próprio corpo, como proposto nesse post.
    Fugi desse post porque não queria muito pensar em escrever uma carta empática, assertiva e gentil a meu corpo. Tenho raiva dele, tanta raiva que não conseguia nem pensar em ser empática ou gentil. Mas relendo, me identifiquei demais com o trecho em que ela diz “Sabe como geralmente me descrevem? “Uma menina inteligente”. Disso decorrem duas coisas: jura que sou ainda “menina”, se já tenho 35 anos? Gosto que me chamam de “inteligente”, porque assim se reforça a ideia: não preciso ter você-corpo pra existir e ser elogiada.”
    Me identifiquei com as duas partes: eu tenho 36 anos e ainda sou tratada como menina (principalmente pelo meu pai), me sinto menina, me sinto tão jovem em tantos aspectos ao mesmo tempo em que esse “36 anos” tem pesado demais. Muitas vezes me sinto longe da pessoa ponderada que eu imaginava ser quando passasse dos 30 e às vezes tenho a impressão ter tido experiência para 3x 36 anos. Desse lado, o “36 anos” tem pesado. Penso “pra que me preocupar com isso agora.... que estou VELHA”. Ao ler isso, acho absurdo, mas juro que é isso o que penso na maior parte do tempo.
    A segunda parte dessa frase bateu ainda mais forte: também sou considerada inteligente. Me agarro nisso com todas as minhas forças – ser inteligente é onde ninguém pode me bater. Ninguém pode me agredir. Posso desmontar argumentos em questão de segundos – com elegância das formulações complexas ou com golpes baixos do tipo “ai, olha, vai aprender a escrever primeiro antes de vir aqui tentar discutir”.

    O corpo nunca foi meu forte. Nunca gostei da forma dele. Quando criança, sofria bulllying por causa do meu corpo – mesmo não tendo sido uma criança gorda (o curioso é que sofria bullying principalmente pelo meu cabelo, com o qual tenho uma relação muito boa hoje), era vitima de dedos apontando para mim. As pessoas diziam que eu era gorda, que eu comia demais (não, eu não era gorda, sim, eu comia muito pao em um momento da minha vida). Nunca fui boa de esporte – sempre sempre SEMPRE fui a ultima a ser chamada para o time... Isso é um trauma pra mim até hoje...

    ResponderExcluir